CENA I – A crônica de hoje tem como cenário inicial a cidade de Coari, situada na Região do Médio Solimões, entre o Lago de Mamiá e o Lago de Coari, a trezentos e sessenta e três quilômetros em linha reta de Manaus. A linha reta está registrada apenas para fins cartográficos, pois, na verdade, para chegar à Coari somente de avião ou atravessando os quatrocentos e sessenta e três quilômetros da via fluvial. A pequena área urbana abriga aproximadamente quarenta mil habitantes, que retiram do pequeno comércio local, da cultura da banana, da pesca, da extração de castanha e de madeiras suas principais fontes de subsistências. A malária é uma moradora intrusa na Região, assim como a mortalidade infantil. Porém nos últimos anos, a exemplo de várias cidades brasileiras, os royalties pagos pela PETROBRÁS passaram a representar recursos significativos e esperança de um crescimento sustentável.
CENA III – Definidos o palco e o elenco da crônica, registrar enredo é tarefa que agora se faz. A trama aqui retratada começa com o monólogo do amigo Luciano. Contou-me ele que, diante de um público tão plural e complexo, procurou um tema que fosse comum a todos. Não era uma tarefa fácil. Entretanto, espirituoso, humanista e simples como é, começou assim a sua apresentação:
– Eu não nasci como estou agora, um senhor de aproximadamente setenta anos e que todos chamam pomposamente de Ministro-Corregedor do TST. Eu nasci da mesma forma com que todos aqui nasceram, embora minha maternidade estivesse localizada na pequena cidade de Pedro Leopoldo, no interior de Minas Gerais. E como milhões de brasileiros, nasci pobre e pobre continuei durante toda adolescência. Sonhei um dia mudar o destino da minha, sonhos não diferentes dos aqui sonhados. Acordei disposto a fazer real este sonho. Juntei o pouco que tinha e, carregando na mala o apoio da minha família, peguei o trem da capital, até porque mineiro não perde trem. Trabalhei o que permitiam trabalhar. Passei a fome que o estômago podia agüentar. Nunca roubei, tampouco autorizei que roubassem meus sonhos. Não desisti, mesmo quando alguns me aconselharam a voltar. O esforço valeu. O tempo me fez advogado, vereador em Pedro Leopoldo, juiz do trabalho e agora estou ministro. Mas de tudo isso apenas concluo: sou apenas um brasileiro que sonhou, despertou, levantou e ainda vive realizando sonhos, sou apenas um brasileiro como qualquer um de vocês, nem melhor ou pior.
CENA IV – Airton da Costa é outro personagem desta história. Ele ganhou notoriedade ao ser recentemente aprovado no Exame de Ordem realizado pela OAB/SP. Descobriu-se que o novo advogado era um ex-menino de rua e ex-torneiro mecânico que, ironicamente, perdera um dos seus dedos na máquina em que trabalhava. A sua oratória também emociona. Assim ele fala de seu papel, desempenhado na plenitude de seus quarenta e dois anos:
– Ser advogado um dia era um sonho de criança. Sonhava tanto que, enquanto meus amigos jogavam bola, eu brincava de advogado de acusação. Até os meus dez anos fiquei nessa situação de catar papelão e dormia na rua. Meu alimento, a maioria, vinha do lixão. Depois, passei a trabalhar capinando quintal, fazia limpeza em residências. Sempre trabalhei de torneiro mecânico, mas fiquei muitos anos desempregado; nesse período passei muita necessidade, porém, nunca deixei de lado o meu sonho de criança de um dia ser advogado.
CENA V – Luciano de Castilho e Airton da Costa são personagem reais. Coari, São Leopoldo, Birigui e Campos do Sertão do Rio Real são cenários que abrigam milhares de sagas fabulosas. Todos eles sobreviventes que ousaram desafiar a lógica perversa e excludente da elite brasileira. Eles refletem a esperança de um Brasil diferente, que conseguiu vencer o descaso educacional, a corrupção governamental e o abandono social. Com eles também podemos sonhar que o Brasil superará cada um destes terríveis obstáculos, sendo, efetivamente, o país digno de todos.