Après nous Le Déluge II.

Surpreso com os recentes degolamentos nos presídios brasileiros, refleti entre o pasmo e a desesperança, o livro “Après nous Le Déluge”, do filósofo alemão Peter Sloterdijk.

Nas minhas interpretações, há ali uma certa dúvida quanto ao aperfeiçoamento das relações de bom convívio entre os homens, o aprimoramento do ser humano em suas divergências, evidenciando para surpresa e espanto de poucos, um assentimento amplo, coletivo e indiferente de uma maré crescente em barbárie.

Estaria a humanidade se embrutecendo ao esquecer os próprios erros e desvios, repetindo as mesmas misérias numa demência renitente e absurda, tudo o que ninguém pensaria, jamais, sobretudo porque estamos a escutar ainda o eco dos gemidos do passado recente, quase ontem?

E o que dizer destes fatos tão dolorosos, e ainda tão contemporâneos e confinantes, que resistem na paisagem vista no nosso espelho retrovisor?

Seria esta imagem, tão nítida e precisa, uma ilusão fictícia, uma encenação possível de alteração em efeito photoshop de realidade virtual; algo que foi, mas pode ser apagado, tão desmemoriado, quão refeito; malfeito, remendado, adulterado e falsificado, e até malfadadamente factível e edulcorado, ao sabor de uma lavagem cerebrina, porque perpetuamente os fins sempre poderão justificar os meios?

E neste particular não cabe ainda a frase título citada, “Depois de nós o dilúvio”, chiste mais das vezes repetido, entre o frívolo e o espirituoso, afinal o mundo em suas indiferenças nunca saberá de fato quem é o culpado por “envernizar a barata”?

E o discurso fútil de Madame Pompadour cabe aqui como não todo politicamente incorreto?

Não fora este disparatado discurso um desabafo pronunciado, em novembro de 1857, por uma dama de comportamento censurável, por amásia teúda e manteúda do rei Bourbon, Luís XV, justamente quando se soube do insucesso da batalha de Rosbach, em que a nação francesa fora derrotada por um exercito inferior, o do alemão Frederico II da Prússia?

Não teve este disparate um contexto premonitório pela debacle que se fez consequente, derrubando a monarquia, duas décadas depois, erigindo a República e o sequente Terror Revolucionário, com a guilhotina ceifando gargantas, sem preferir gargarejo; do nobre, do sacro e da plebe, e dos “sans coulottes”, como se dizia então, em suprema glória de cidadania? E da boa ou má verborragia?

Navalha, que democraticamente nivelava logorréias e vitupérios, aparando cabeças pensantes do variado relevo ideológico?

Cabeças arrancadas por um reles refletir suspeito, uma insinuação fundamentada ou caluniosa  de vilania denunciada, uma denúncia verbosa, uma pronúncia célere e um apenar mais-que-ligeiro, superado apenas pela velocíssima execução capital; precisa, enérgica e cirúrgica.

Cabeças extraídas espetacularmente e remetidas em praça pública à cesta de lixo da história, porque não devia ensejar dúvida ou comiseração, e o povo nunca deixaria de aí se refestelar e felicitar, enquanto auditório, senão sinistro, mais de além funesto, por conservar a sua própria em desmiolo bem viva no pescoço.

História que não parou por aí, com o mundo vivendo, esquecendo e perseguindo traumas.

Em suas reflexões Peter Sloterdijk relata sete fatos datados de 1793 a 1944-1971, em que bem vale constatar uma espécie de queda livre em degradação de modos e costumes da humanidade, a saber:

1.  Paris, França, 22 de Janeiro de 1793 em torno de oito horas da noite.

2.  Paris, França, 2 de Dezembro de 1804.

3.  Zurique, Suíça, 5 de Fevereiro de 1916.

4.  Yekaterimburgo, noite de 16 para 17 de Julho de 1918.

5.  Moscou, Rússia, 13 de Março de 1938.

6.  Posen, Polônia, 4 de Outubro de 1943.

7.  Bretton Woods, 22 de Julho de 1944 – Washington 15 agosto de 1971.

Abordaremos neste estudo os dois primeiros.

1. Paris, 22 de Janeiro de 1793, em torno das 20 Horas.

Utilizando uma trama ficcional em cenário verdadeiro, Sloterdijk utiliza o conto de Honoré de Balzac (1799-1850), “Um episódio do Terror”, escrito em 1831, no qual o autor de A Comédia Humana narra o silêncio opressivo vigente no dia subsequente à execução do Rei Luís XVI.

A cidade de Paris estava perplexa.

O Rei, um símbolo centenário da ordem e da lei fora derrubado, enquanto norte e leme da nação.

A quem obedecer agora? Como estabelecer o novo norte, a nova vereda a perseguir?
Um casal segue pelas ruas escuras e desertas da cidade amedrontado com o silêncio que o cerca e a treva que ameaça o seu prosseguir.

A noite é fria. As nuvens e névoas estavam baixas, como a querer abafar os espíritos paralisados da metrópole com um tecido de constrangimento, bravata, angústia e remorso.

O carrasco Charles-Henri Sanson, personagem de "Um episódio do Terror", conto de Honoré de Balzac.

O casal dirige-se a uma venda onde desejam adquirir hóstias para a celebração de uma Missa em sufrágio do defunto Rei, um Santo Mártir para eles.

Seguido por passos assustadores, o casal é abordado por um homem de fisionomia terrível que os alcança.

O homem se identifica: é o carrasco Charles-Henri Sanson, aquele cuja profissão se fazia sinistra, por executar a pena capital de malfeitores assim ditados pela Lei, a quem obedecia com eficiência e profissionalismo.

O carrasco quer se somar também à Eucaristia fúnebre..

Acabara de acionar a guilhotina. É verdade! Mas confessa estar em remorso por degolar a cabeça do Rei.

Matara alguém a quem costumara amar e obedecer.

Dirá em convulsa confissão ao Sacerdote: “Matei um homem inocente, alguém que não fez nenhum mal!”.

Há uma previsão de dias tenebrosos para todos.

O carrasco diz ao padre, como promessa sacrificial, que nada lhe restaria de mal. Remunerar-lhe-ia o sustento com o seu salário por toda a vida. Era uma  penitência como paga de seus erros.

E ao padre nunca faltou a moeda do carrasco, enquanto variadas cabeças seriam amputadas ao sabor do desejo e da vontade imperante, em variegada opinião, tão inconstante quão mutável. Uma degradação inumana, concebida como depuração louvável e necessária assepsia,  a consignar ausência de compaixão e piedade.

2. Paris, 2 de dezembro de 1804. 

Napoleão Bonaparte se faz imperador.

Atingia o impensável a partir do nada, porque ousara seguir em frente, confiante na sua boa estrela.

Sua ascensão fora meteórica: Nascido em Ajaccio, em 1769, este ilhéu Corso, tinha por nome de família, o Ramolino da mãe, Maria Letícia, e Buonaparte do pai, Carlos Maria. Família que bem se enquadraria entre os preconcebidos “Borra-botas” ou “Sem Eira nem Beira”, de nosso uso colonial.

O sobrenome Ramolino logo foi esquecido, e o Buonaparte se imortalizou como Bonaparte.

Napoleão Bonaparte recebe o título de Imperador por manifestação do Senado.

Como “Petit Caporal”, ou Pequeno Cabo,  logo foi acarinhado pelos seus companheiros soldados, adquirindo-lhes o respeito a confiança e a obediência por sua bravura e inteligência.

Firmava-se de imediato não só como um líder vencedor, mas, sobretudo, como um comandante de bravos guerreiros.

Atingirá rapidamente o oficialato, numa época em que a França sofria com a desorganização de seu exército em meio a excedente anarquia revolucionária.

Napoleão, descumprindo ordens de seus superiores, mostra-se um campeão em sucessivas vitórias, alguém detentor de louros somente, enquanto a pátria se dilacera em lutas fratricidas, com os grupos e partidos se aniquilando uns aos outros, em assembleias ruidosas.

Primeiro destronam Luís XVI e o matam em praça pública, como o cidadão comum, Luís Capeto, sua rainha Maria Antonieta e muitos monarquistas.

Seguem depois alguns oportunistas como Philippe de Orleans,  que abdicara a herança que por dinastia lhe cabia, preferindo ser  Philippe Égalité (Igualdade), igualmente guilhotinado.

Em Paris, a navalha revolucionária barbeava a todos sem preferência; os  da direita girondina de Brissot, Vergniaud, Madame Roland, levando até o filósofo Condorcet, que defendia a educação para a formação do homem, e o químico Lavoisier, porque era um Fermier, ou seja, um eficiente cobrador de impostos.

Distante, Napoleão prossegue vitorioso, enquanto a lâmina revolucionária eliminava amplo espectro político sem preferência: dos  indulgentes Danton e Demoulins, aos radicais de Hébert; da esquerda jacobina de Roberspierre, Saint-Just e Marat, chegando até a extrema-esquerda de Grachus Babeuf, aquele que ousara projetar uma conspiração de iguais.

Em tanta luta fratricida, tudo conspirava para que Napoleão fosse engolido pela maré revolucionária.

No entanto sua fama cresce como vitorioso em sucessivas batalhas, enquanto o Diretório, esta comissão administrativa sempre refém de veleidades parlamentares se desagrega com sua autoridade contestada.

A revolução substitui o Diretório criando o Consulado. Um triunvirato para salvação da pátria.

Napoleão, um general apenas, é nomeado um dos Cônsules.

Os outros dois são duas raposas políticas sobreviventes: o Abade Sieyès, aquele fiel defensor do Terceiro Estado,  como verdadeira expressão legislativa nacional, e Roger Ducos.

Logo Napoleão afastará os dois e se elegerá Primeiro-Consul.

Virá depois o golpe de 18 de Brumário, em 9 de novembro de 1799, quando a Assembleia Nacional é dissolvida a força das baionetas e implantada a Ditadura.

O general patriota e invencível, para quem nada é impossível, ousa dizer, sem temer a guilhotina que a Revolução chegara literalmente a termo.

Virá 2 de Dezembro de 1804, quando impregnado do espírito de usurpação e improvisação sem limites irá se proclamar Imperador.

Proclamação que será aprovada em 18 de maio de 1804, bem aceita como necessária pelo Senado,  “para glória e felicidade da República”.

Eis então Napoleão I, o novo Carlos Magno, a ser coroado pelo Papa na Catedral de Notre Dame, tomando a abelha como símbolo operoso de uma nova dinastia, e proibindo todo um povo de jamais se render ao impossível.

Toda a glória e poder de Napoleão era fruto da ousadia, nunca da lei, da dinastia ou da sucessão e linhagem.

Ter um herdeiro, como se viu depois, não lhe ensejou sucessão. O dilúvio que se seguiu a Waterloo, com Napoleão encarcerado na Ilha de Santa Helena, não lhe permitiu legar sucessores.

Pode-se falar apenas de Napoleão III, um seu sobrinho a quem Victor Hugo chamava de Napoleão, o pequeno (Le Petit), e que foi apodado por Bismarck em 1870.

No mais um excedente número de megalômanos povoando diversos manicômios mundo afora.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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