Contaram-me certa vez, não lembro quem, a história dramática de um Pastor alemão durante o período em que Hitler horrorizou o mundo com a sua proposta nazista. Dizem que este religioso fez o seguinte depoimento: “no começo, eles (os nazistas) passaram a perseguir todos os comunistas … eu não era comunista, não me incomodei … depois passaram a perseguir todos os sindicalistas … também não liguei, mesmo porque não participava dessa atividade … a seguir, passaram a prender todos aqueles que se opunham ao governo … igualmente permaneci distante, pois o meu mundo era o religioso, cuidava apenas do Reino de Deus … após, começaram a prender, confiscar bens e até matar os judeus da minha comunidade … dei pouca importância ao fato, pois eles não faziam parte do meu rebanho … finalmente, passaram a perseguir todos os religiosos da Alemanha … entraram violentamente em minha igreja e me prenderam … aí passei a gritar em busca de socorro … ninguém apareceu … percebi, então, que estava sozinho … todos os meus vizinhos já estavam presos … foram presos quando eu ainda podia fazer alguma coisa … hoje sou apenas um deles … mais um preso pelos nazistas de Hitler .. sozinho … abandonado … sem força ou apoio para resistir”.
Esta história, verdadeira ou não, retrata um pouco do que é a nossa própria vida. Denuncia o que ocorre quando achamos que os problemas das pessoas, ainda que residentes em terras distantes, não são assuntos que nos atinge, direta ou indiretamente. Demonstra que a nossa omissão é solidariamente responsável pelas coisas, boas ou más, que atinge o planeta, assim como pelo nascimento e crescimento e perpetuação de idéias autoritárias e destrutivas. Ensina que a omissão é também uma forma clara de ação. Uma ação que não controlamos, mas que, mesmo assim, pode provocar conseqüências negativas sobre nossas vidas.
Afinal, não somos nós, familiares e vizinhos, responsáveis pela violência doméstica quando nos recusamos ajudar as vitimas ou a denunciar os agressores que conhecemos, sob a cômoda argumentação de que não devemos interferir nas vidas alheias? Não somos nós, empregadores, que contribuímos com a desigualdade ao pagarmos salários inferiores aos negros e às mulheres? Não somos nós, eleitores, responsáveis pela manutenção da corrupção brasileira, votando em pessoas sabidamente corruptas, elegendo como correta a expressão “rouba, mas faz”. Não somos nós, cidadãos, que contribuímos para aumentar a marginalidade quando nos recusamos a empregar ou ajudar a um ex-presidiário ou mesmo a um pobre que nos bate à porta? Não somos nós também responsáveis, com viventes, responsáveis pela poluição das praias, pelos lixos das ruas, pelos gases dos carros ou pelo constante derrubar das árvores?
Estas e outras não são apenas interrogações irreais ou meramente quimericamente argumentativas, soltas ao vento da reflexão em pedaço de papel ou num espaço de debate virtual. Não, a violência familiar faz uma vitima a cada minuto de um longo dia, várias delas estampadas de forma sensacionalista nos jornais diários que circulam no Brasil. Da mesma forma, os negros são constantemente excluídos da sociedade, sendo até comum mulheres demitidas porque ousaram ficar grávidas. Em toda e qualquer eleição, independentemente do espaço da disputa, políticos corruptos estão sendo eleitos ou reeleitos, não raro tendo como adversários outros políticos tão ou mais corruptos. As penitenciárias, repetidamente, recebem de volta os filhos que não foram acolhidos pela sociedade, mais violentos, desesperançados e violentos do que estavam antes de partir. Todos os dias, sem qualquer interruçao, as praias amanhecem enfeitadas de plásticos e garrafas vazias, as ruas encharcadas de lixo, o trânsito satisfeito pelo volume de carros encaixotados e a poluição feliz por não encontrar árvores capazes de acabar com a sua ação.
Não despertamos sequer quando crianças são jogadas como lixo nos esgotos e rios da cidade, tampouco quando as favelas fazem dos negros um habitante preferencial e as mulheres são violentadas ou assediadas sexualmente. Permanecemos assim, calados, mesmo quando percebemos que políticos notoriamente corruptos são escalados para punir ou combater esquemas corruptos. Não nos mexemos nem mesmo quando as penitenciárias se transformam em escolas competentes em nos matar. Ficamos calados até quando tempestades e tsunamis destroem países inteiros. E assim ficamos. Não se sabe até quando, embora se suspeite que até permaneceremos omissos até ficarmos sozinhos, sem ninguém para nos ajudar.