Fortaleza, vinte horas. Enquanto aguardo um casal de amigos, começo a ler um interessante artigo assinado por Dagomir Marquezi. Na sua preleção, Marquezi assume que pretende ajudar o leitor a “parar de comer carne”. E através do didático esquema de perguntas e respostas, começa esfaqueando no estômago humanista do carnívoro relutante. Eis algumas das estocadas: “Por que não comer carne? Cada um tem sua razão. Eu não como carne porque sei o que isso representa de sofrimento para os animais sacrificados. Tenho consciência de que, ‘racional’ ou não, sou tão animal quanto um frango ou uma sardinha. Não gostaria que eles fizessem comigo o que os humanos fazem com eles.”
Fortaleza, vinte horas e quarenta minutos. No hall do hotel acabo de ler o artigo de Marquezi, criativamente intitulado “a arte de largar a bisteca”. Ainda espero o casal que me convidara para jantar. Acuso o golpe. A lembrança do que iria fazer me faz pensativo. Encaro-a como um aviso para que eu consolidasse o meu desejo de “largar a bisteca” definitivamente. Chego à conclusão de que nenhum ‘animal’ entraria no meu cardápio noturno. Estaria, assim, nesta missão, acompanhado, dentre outros, por Lobão, Rita Lee, Éder Jofre, Lucélia Santos, Patrícia Travassos, Fernanda Lima, Bob Dylan, Brandi, Desiree, Elvis Costelo, Erykah Badu, Janet Jackson, Paul McCartney, Seal, Ziggy Marley, DJ Moby, DJ May, Pink, Justin Timberlake, Steve Vai, Kim Basinger, Penélope Cruz, Natalie Porteman, Pámela Anderson, Sócrates, Platão, Leonardo da Vince, Leon Tolstoi e Albert Einstein.
Fortaleza, vinte horas e cinqüenta e oito minutos. Os meus amigos finalmente chegam. Acolho, convencido, a desculpa pelo atraso. A esposa demorara escolhendo o vestido que melhor combinaria com um dos seus incontáveis sapatos. Casado e pai de duas eternas adolescentes sei que é realmente árdua e demorada esta tarefa. Os dois, gentis e bons anfitriões, registram que compensariam a demora com um delicioso manjar, ainda mais quando a noite estava sendo testemunha pela lua cheia. Não tinha dúvida de que cumpririam o prometido. O coração nordestino nasce com a característica do bem-cuidar das pessoas amigas. Promessa que também fiz questão de cumprir, evitando contribuir com o sofrimento ou extermínio de qualquer animal naquela agradável noite.
Cuiabá, treze horas, dia seguinte. Almoço com vários amigos e dirigentes da OAB/MT. Continuo sem provar dos ‘animais’ servidos em generosos pratos. Participo, entusiasmado, das conversas ecológicas devoradas pelos comensais. Não poderia ser diferente, a defesa do meio ambiente é um dos meus pratos prediletos. O prato principal a devastação das florestas brasileiras, assustadora e violentamente substituídas pelo plantio de soja e milho. Danos ambientais irreparáveis, poluição borrando o colorido das matas, trabalho escravo fazendo medieval o mundo contemporâneo, contrabando de vidas e esperança, árvores centenárias derrubadas em pequenos segundos, animais extintos e em extinção guardados apenas como saudosa lembrança, dentre outras conseqüências, são os temas indigestamente postos em mesa.
Cuiabá, dezenove horas e vinte minutos, auditório da OAB/MT. Começa o seminário que justificara a minha presença. A defesa do meio ambiente é o tema central. Os ambientalistas os participantes mais animados. A revolta contra a devastação da Amazônia e a exploração do Pantanal os assuntos recorrentes. A luta pela preservação do mico-leão-dourado é exemplo discutido. Barões da soja e industriais da cana apontados como grandes vilões. Descaso público, conivência ideológica e corrupção denunciados como cúmplices. Panfletos relacionando os animais extintos ou próximos da extinção distribuídos. Campanhas institucionais exigidas. Faixas de protestos sugeridas. Boicote contra o uso da soja sugerido. Um grande manifesto em defesa das florestas e da vida aprovado por unanimidade.
Aracaju, treze horas e trinta minutos. Dia seguinte ao estremecido debate ecológico. O avião calmamente pousa no Aeroporto Santa Maria. A suavidade do pousar contrasta com a agitada fome dos passageiros. O pavoroso sanduíche servido pela TAM sobrou abandonado na bandeja da aeromoça. Em casa, o almoço é servido imediatamente. O lado dedicado à minha esposa exibe um variado cardápio vegetariano, fazendo da soja um destaque orgulhoso. O canto destinado aos meus carnívoros filhos exibe um suculento lombo recheado com calabresa e farofa. A fome exige rápida escolha. Escolho e sacio a minha humana carência alimentar.
Não sei o local ou o horário. Você está terminando a leitura do texto, ainda não sabe o que escolhi. Certamente já deve ter feito sua própria escolha. E o que decidiu? O que escolheria para garantir a sua sobrevivência? Aceitaria a matança assumida e cruel dos bovinos? Faria a opção pela soja que retira o habitat e faz extinguir, longe dos olhos, milhares de animais e seculares florestas? Morreria de fome? Afinal, Boi ou mico-leão-dourado, o que escolher?