– Ei! Vamos hoje à noite ao matadouro? – É! Até que amanheci com uma baita fome. Você quer ir mesmo??? – Nessa crise de carne, não é má idéia … – Ah! Ah! Ah! Ahhhhhh!!!!!!! Todo dia era mesma coisa, o mesmo papo e a mesma canina fome. Nas fábricas, nos órgãos públicos, nas mesas dos bares, em qualquer lugar que estivessem, todos riam das façanhas daqueles dois ilustres personagens. Afinal, quando mais carne abatida e história contada, mais macho era seu autor. Aliás, o sentimento de macheza não era só do autor da proeza, era impessoal, contaminava todo o local, num verdadeiro toque de mágica e harmonia. Mas em família ou na igreja, eles logo esqueciam do matadouro, mesmo porque eram pessoas extremamente respeitadas, pais perfeitos e católicos fervorosos. (Quer dizer!) Esqueciam não, repugnava-o. Diziam que o matadouro não era lugar digno de se freqüentar, bem assim que seus filhos jamais poriam os seus santos pés em seu interior. Afinal, como concluíam de forma uníssona e ensaiada, safadeza pegava como lepra, devendo, portanto, ser evitada. Porém, quando a noite chegava, os dois companheiros eram sempre eram os primeiros a chegar à luxuosa casa noturna da cidade em que moravam. E se lhes perguntavam a razão da coerente pontualidade britânica, diziam marotos e explicadamente: – Nós gostamos de carne comida. Detestamos os corpos espalmados. Para nós tudo tem que estar fresco e cheiroso, pois somos marchantes gabaritados e profissionais. Algumas vezes, para sobrevivência do sistema ou mesmo até porque não eram tão profissionais quanto se gabavam, eles faziam nascer mais uma vida. Talvez seja melhor dizer uma nova cria. – Uma “criança sem pedigree” – como apelidavam os filhos das “carnes abatidas”. – ATO II – Até que um dia, não lembro exatamente quando, a cidade reunida na Câmara dos Vereadores, resolveu convocar os dois inseparáveis parceiros para uma reunião demorada. Foram discursos, sermões e falações memoráveis. Declamaram o prefeito, o juiz, os vereadores, o padre, o delegado e até o sacristão. A reunião já ia noite adentro quando falou o Presidente da Câmara, olhando para os dois emocionados e cabisbaixos amigos: – Meus caros concidadãos. Encerrando esta histórica sessão, esta Casa resolveu, após uma análise aprofundada da vida de Vossas Senhorias, conceder-lhes, para que de hoje em diante não sejam parias nesta cidade acolhedora, os honrados Títulos de Cidadãos, pois são grandes homens, cristãos exemplares e cidadão dignos de honra. Nossa cidade está orgulhosa de seus novos filhos. Encerrada a solenidade, ambos estavam radiantes e felizes porque eram admirados e cumprimentados por seus novos compatriotas. Sequer lamentavam ter perdido uma noite de abate. Não podiam realmente estar tristes, pois os elogios, salgadinhos e docinhos servidos no coquetel também saciavam as suas outras necessidades famélicas. – ATO III – Na semana seguinte, os jornais noticiavam a existência de uma grande rede de tráfico de mulheres e de prostituição infantil em uma cidade vizinha. Todos ficaram revoltados, como se pode esperar dos bons e sérios cidadãos. Fizeram até um grande ato de apoio aos vizinhos que sofriam. Pena que ninguém tenha lembrado dos matadouros de suas próprias vidas. Cezar Britto, é advogado e secretário-Geral da OAB
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