Criminalização dos protestos e retrocesso na democracia

Embora a consolidação da democracia formal possa ser indicada como grande saldo positivo dos vinte e cinco anos da Constituição de 1988 (completados em outubro passado), com o maior período republicano de estabilidade das instituições democráticas e de eleições regulares, periódicas e livres, afastado o componente militar como fator político de decisão, o fato é que a história é feita de avanços e recuos, sendo encargo da cidadania postar-se cotidianamente na defesa da manutenção das liberdades públicas e políticas, a duras penas conquistadas.

Com efeito, mesmo após as jornadas de junho de 2013 (conforme abordamos em algumas colunas no ano passado) – que ao menos indicaram a necessidade imperiosa de avanço do processo democrático brasileiro, com melhor desenvolvimento e aplicação efetiva dos mecanismos de democracia participativa – deparamo-nos com reações contrárias que além da recusa em aceitar essa participação, atuam para reduzir e restringir conquistas democráticas e liberdades públicas já devidamente consolidadas como também para inviabilizá-las.

Assim é que assistimos com preocupação procedimentos cíclicos de criminalização de movimentos sociais, com amplas campanhas publicitárias e de mídia que procuram passar para a sociedade a distorcida ideia de que todos os que se mobilizam legitimamente – em mobilizações políticas que vão desde o singelo exercício da liberdade de manifestação do pensamento, passando pela liberdade de associação e de reunião em locais abertos ao público até o exercício do direito de greve – são “vândalos” ou “criminosos”.

Um novo capítulo dessa criminalização dos movimentos sociais e dos protestos ocorre nesse momento em que a trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade, da Rede Bandeirantes de Televisão – atingido por um rojão disparado durante um protesto no Rio de Janeiro por um cidadão que restou devidamente identificado e está submetido, por ora, a prisão temporária – é explorada pelos meios de comunicação social e por instâncias governamentais e instâncias de representação política no Poder Legislativo para legitimar a adoção de medidas jurídicas as mais diversas, voltadas para o cerceamento dessas liberdades públicas historicamente conquistadas.

Tramitam no Congresso Nacional projetos de lei que procuram definir juridicamente o crime de “terrorismo” com nítida inspiração ideológica na Lei de Segurança Nacional – utilizada pela ditadura militar para coibir manifestações dissonantes e reprimir movimentos sociais e opositores políticos – e projetos de lei que pretendem regular o exercício da liberdade de reunião em locais abertos ao público, com nítido propósito cerceador de protestos e manifestações.

A ideia é vencer pelo discurso de que o direito de protestar não pode servir de amparo para vandalismos, mas a finalidade indisfarçável é cercear os livres protestos, seja para impedir que os protestos de junho de 2013 (por ocasião dos jogos da Copa das Confederações) se repitam, agora a propósito da realização dos jogos da Copa do Mundo (pelo evidente receio de que grandes negócios privados e lucrativos possam ser prejudicados), seja para camuflar a incapacidade gerencial do Poder Público de garantir efetiva segurança, tanto para quem deseja livre e legitimamente se manifestar e protestar, tanto para a população em geral (porque não faltam mecanismos jurídicos à disposição do aparto de segurança e policial para tanto, e o que observamos lamentavelmente, sobretudo nos protestos do ano passado, foi a repressão abusiva policial contra legítimos e pacíficos manifestantes e a total leniência com infiltrados e praticantes de crimes comuns).

Uma sociedade democrática, complexa, pluralista e multifacetada deve admitir como inerente ao seu cotidiano o convívio entre os que pensam divergentemente, entre os que atuam politicamente para a transformação da realidade, ainda que com inspirações diferentes ou visões ideológicas distintas. E, nesse contexto, certas tensões são naturais e inerentes ao processo democrático.

Pode-se concordar ou discordar, aderir ativa ou passivamente (ou não aderir) a mobilizações como as já convocadas pelas redes sociais (como “Não Vai Ter Copa” ou “Vai Ter Copa”); todas as posições são legítimas e fazem parte dos naturais embates democráticos de disputas por espaços e disputas políticas e ideológicas.

O que um autêntico Estado Democrático de Direito não pode permitir é que o seu braço armado se imponha aos legítimos movimentos sociais, tratando-os como questão policial. Combater a criminalização dos movimentos sociais e dos protestos é medida impositiva e mantenedora das conquistas democráticas.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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