CRISTÃOS E MOUROS EM SERGIPE

Há uma forte e explícita influência árabe na cultura brasileira, como bem demonstrou a professora Maria Thetis Nunes na sua Tese de Concurso à cátedra de História do Colégio Ateneu Sergipense, em 1945, republicada há pouco tempo. Outros autores arabistas trataram de identificar, sempre referindo as ciências e as artes como campos notórios aos estudos, a contribuição árabe à civilização. Os estudos, no entanto, são ainda parcos e deixam de ferir questões de fundo, como as guerras entre cristãos e mouros, projetadas, esteticamente, nos repertórios que ainda vigoram no Brasil e notadamente em Sergipe.

 

A guerra de Lepanto, em 1571, entre exércitos cristãos, comandados por D. João de Áustria, e sarracenos tem um valor especial, não apenas pela sua antiguidade, mas porque gerou cultos religiosos que foram espalhados pelo Novo Mundo, repletos de valores catequéticos, como o de Nossa Senhora da Vitória (que é a padroeira de São Cristovão, como se a guerra de Cristovão de Barros contra os índios fosse uma reprodução de Lepanto) e o de Nossa Senhora do Rosário, orago da comunidade de Rosário do Catete, mas com festas em várias outras comunidades.

 

Nas antigas festas de Nossa Senhora da Vitória, como relata Serafim de Santiago no seu inédito Anuário Cristovense, manuscrito de 1915, eram comuns as manifestações culturais populares, como a Chegança, os Quilombos (hoje Labe-Sujos e Caboclinhos). Também ocorriam no Nordeste as solenidades de coroação de rei e rainha negros, que hoje ocorrem na festa de Reis, em Japaratuba. Silvio Romero tanto anotou como forneceu informações sobre a festa de Nossa Senhora do Rosário em Lagarto a Melo Morais Filho, como se pode conferir no Festas e Tradições Populares do Brasil, do escritor baiano. Novamente a Chegança, os Reisados, Congadas e Cacumbís, eram freqüentes nas celebrações da santa.

 

A Chegança é um teatro popular, representando uma contenda, tendo de um lado a Nau da Cristandade e do outro o Quartel da Mourama. O navio dos cristãos, com seus almirantes, embaixadores, oficiais, gajeiros, e até um padre aborda o refúgio dos mouros, propondo através de embaixadas a conversão. Depois de fracassar diplomaticamente, os cristãos tomam armas e vencem os mouros, submetendo-os, de joelhos, ao batismo, com o que fica definida a vitória religiosa, mas também política e territorial.

 

Os grupos de Lambe-sujos vestem o corpo com um calção vermelho e cobrem a cabeça com um barrete de igual cor, tal qual os árabes eram obrigados a usar, em alguns países da Europa, para serem reconhecidos. O vermelho, com todas as suas características na emblemática medieval, se tornou o partido dos infiéis, ou dos mouros, enquanto o azul é o cordão dos cristãos. Assim está na Cavalhada, onde cristãos liderados pelo rei Carlos Magno derrotam os mouros, no Reisado, no Guerreiro, noutras manifestações da lúdica.

 

Está impregnada na cultura popular essa rivalidade entre cristãos e mouros, projetada entre grupos populares, conotando o folclore com o qual buscamos a identidade cultural dos brasileiros. Os ideais de Lepanto estão vivos, ainda hoje, quando a mídia massiva apresenta eixos de interesses, como se fossem do bem e do mal, na representação simbólica medieval.

 

Os dominicanos, que deram popularidade a Nossa Senhora do Rosário, argumentaram em Roma, junto ao Papa, que na guerra de Lepanto enquanto os homens pegavam em armas, suas mulheres, em casa, rezavam o rosário de Nossa Senhora. A campanha eleitoral dos Estados Unidos parece buscar no passado as razões para que as pessoas – mães, mulheres, irmãs dos combatentes norte americanos no Iraque – reforcem votos para o presidente George W. Bush, espécie de D. João de Áustria como combate aos infiéis.

 

A questão, portanto, não está resolvida. Aqui ou ali, nas mais diversas circunstâncias, os árabes são vítimas de agressões e de desconfianças, tão antigas quanto as cruzadas, a história da reconquista, quanto ao Império carolíngio, quanto a guerra de Lepanto. É da maior relevância, então, que o Cultart da Universidade Federal de Sergipe, com Maíra Magno, promovam a IV Encontro de Cultura Árabe de Sergipe, (Workshop Mohamed El Sayed), abrindo a perspectiva do conhecimento sobre manifestações egípcias, sobre os muçulmanos no Brasil, e sobre as guerras do imperialismo. De 21 a 24 deste mês de outubro, no auditório da Sociedade Semear, no Teatro Atheneu e no Cultart, Sergipe tem uma oportunidade de aprender mais e de conscientizar-se sobre temas recorrentes na cultura da humanidade.

 

Estão juntos Mohamed El Sayed, natural do Egito, professor em Madrid, na Espanha, Lejeune Mato Grosso Xavier de Carvalho, da Universidade Metodista de Piracicaba, em São Paulo, Francisco José Alves, da UFS, sob a coordenação de Maíra Magno, apresentando uma visão ampliada dos atuais estudos árabes, sua conotação política, bem como uma amostra artística.

 

E mais poderá ser feito, oportunamente, para esclarecer os fatos da história e a trajetória de povos orientais, dos quais o Brasil herdou traços de cultura que hoje estão incorporados ao pouco que existe de identidade nacional, principalmente nas regiões que concentram populações de árabes e de judeus, como no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Paraná.

 

Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”. Contatos, dúvidas ou sugestões de temas: institutotobiasbarreto@infonet.com.br.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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