De Dorival Caymmi para Jorge Amado

O amigo Dilson Ramos encaminha pelo whatsapp a famosa carta de Dorival Caymmi para Jorge Amado, quando este passava temporada em Londres, em 1976. Foi ali, onde buscou tranquilidade em meio ao fog londrino, que o grande romancista concluiu “Tieta do Agreste”, lançado no ano seguinte.

Com essa novidade das redes sociais, a carta circula de mão em mão deleitando os corações sensíveis ao valor da amizade e à boa poesia. A carta é um poema de amor.

Amor entre homens maduros que se querem comoirmãos, amor aos amigos comuns, à Stela e à Zélia, à Bahia e à cultura trazida da África.

Jozailto Lima assim me disse: “Carta bela. De um tempo em que a efetividade entre os homens não havia ainda trincado”. Zeza Vasconcelos fez um lamento: “Realmente, linda carta. As pessoas não escrevem mais cartas, é uma pena. Hoje, tudo tem que ser curto e rápido, na ponta do dedinho”.

E ficamos todos saudosistas. É a instantaneidade da mensagem nas redes sociais contra a perenidade da letra riscada no papel.

“Um dengo, um molejo, uma doçura! Parece que a gente tá ouvindo ele falar com aquela voz preguiçosa, melodiosa. Parece que a gente tá vendo aquelas imagens”, disse Nadia Cardoso. Jorge Santana e Carlos Hermínio aplaudiram. Mel Almeida achou lindo demais. Yasmin Déda concluiu: “Entre esses dois não poderia ser diferente”. E Gilfrancisco: “Quanta lindeza!”

Para quem não leu, leia. Para quem já leu, vale a pena ler de novo:
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“Jorge meu irmão, são onze e trinta da manhã e terminei de compor uma linda canção para Yemanjá, pois o reflexo do sol desenha seu manto em nosso mar, aqui na Pedra da Sereia. Quantas canções compus para Janaína, nem eu mesmo sei, é minha mãe, dela nasci.

Talvez Stela saiba, ela sabe tudo, que mulher, duas iguais não existem, que foi que eu fiz de bom para merecê-la? Ela te manda um beijo, outro para Zélia e eu morro de saudade de vocês.

Quando vierem, me tragam um pano africano para eu fazer uma túnica e ficar irresistível.

Ontem saí com Carybé, fomos buscar Camafeu na Rampa do Mercado, andamos por aí trocando pernas, sentindo os cheiros, tantos, um perfume de vida ao sol, vendo as cores, só de azuis contamos mais de quinze e havia um ocre na parede de uma casa, nem te digo. Então ao voltar, pintei um quadro, tão bonito, irmão, de causar inveja a Graciano. De inveja, Carybé quase morreu e Jenner, imagine!, se fartou de elogiar, te juro. Um quadro simples: uma baiana, o tabuleiro com abarás e acarajés e gente em volta.

Se eu tivesse tempo, ia ser pintor, ganhava uma fortuna. O que me falta é tempo para pintar, compor vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga que tem às pampas sobrando por aí. O tempo que tenho mal chega para viver: visitar Dona Menininha, saudar Xangô, conversar com Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra pintar?

Quero te dizer uma coisa que já te disse uma vez, há mais de vinte anos quando te deu de viver na Europa e nunca mais voltavas: a Bahia está viva, ainda lá, cada dia mais bonita, o firmamento azul, esse mar tão verde e o povaréu. Por falar nisso, Stela de Oxóssi é a nova iyalorixá do Axé e, na festa da consagração, ikedes e iaôs, todos na roça perguntavam onde anda Obá Arolu que não veio ver sua irmã subir ao trono de rainha?

Pois ontem, às quatro da tarde, um pouco mais ou menos, saí com Carybé e Camafeu a te procurar e não te encontrando, indagamos: que faz ele que não está aqui se aqui é seu lugar? A lua de Londres, já dizia um poeta lusitano que li numa antologia de meu tempo de menino, é merencória. A daqui é aquela lua. Por que foi ele para a Inglaterra? Não é inglês, nem nada, que faz em Londres? Um bom filho-da-puta é o que ele é, nosso irmãozinho.

Sabes que vendi a casa da Pedra da Sereia? Pois vendi. Fizeram um edifício medonho bem em cima dela e anunciaram nos jornais: venha ser vizinho de Dorival Caymmi. Então fiquei retado e vendi a casa, comprei um apartamento na Pituba, vou ser vizinho de James e de João Ubaldo, daquelas duas línguas viperinas, veja que irresponsabilidade a minha.

Mas hoje, antes de me mudar, fiz essa canção para Yemanjá que fala em peixe e em vento, em saveiro e no mestre do saveiro, no mar da Bahia.  Nunca soube falar de outras coisas. Dessas e de mulher. Dora, Marina, Adalgisa, Anália, Rosa morena, como vais morena Rosa, quantas outras e todas, como sabes, são a minha Stela com quem um dia me casei te tendo de padrinho.

A bênção, meu padrinho, Oxóssi te proteja nessas inglaterras, um beijo para Zélia, não esqueçam de trazer meu pano africano, volte logo, tua casa é aqui e eu sou teu irmão Caymmi”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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