Recebi o convite para participar da Conferência dos Advogados Angolanos, que ocorreria capital Luanda, nos dias 20 e 21 de setembro, levando a experiência da advocacia brasileira como pauta de debate. Aceitei de logo a missão, pois ansiava visitar pessoalmente a moradia de minha irmã Angola, cuja intimidade somente me tinham permitido conhecer através de livros, fotografias e recados de terceiros. Teria oportunidade, agora, de poder descrever diretamente as minhas impressões sobre ela, confirmando ou não os comentários que fizeram e que reproduzi em várias oportunidades. Comentei com vários amigos a tarefa que teria, recomendando-me alguns que eu fizesse um diário sobre a viagem, o que achei interessante fazer. Começo, assim, falando sobre a expectativa da viagem, pois o que me contavam de Angola não poderia ser muito animador, embora meu coração brasileiro já estivesse acostumado à dor provocada pela miséria de um povo. É que a dor angolana parece ser infinitamente maior do que a nossa, pois, além de sobrevivente de uma fratricida guerra entre irmãos, estava sendo diariamente destruída pela Aids (um terço da população) e pelas minas terrestres (o país que mais dela possui). Vive também na esperança de que a paz poderia ser quebrada a qualquer tempo, pois os contra-revolucionários da UNITA não tinham baixado definitivamente as suas armas, deixando tenso todos aqueles que moram e visitam o país. E não é só, antes de embarcar, me aconselharam a comprar e usar diariamente repelente contra o mosquito transmissor da malária, uma doença comum em Angola. Imediatamente me lembrei de Jorge Trindade, um amigo-irmão que falecera repentinamente quando visitara a África na condição de técnico da Seleção Brasileira de Handebol, vitima das misteriosas doenças africanas. Já dentro do avião, no trajeto brasileiro, coincidentemente encontro um amigo que já trabalhou em Angola, cuidando de acrescer duas outras características à capital que logo visitaria, Disse-me que ela estava lamentavelmente destruída pela guerra e exalava constantemente um odor desagradável. Mas naquela etapa da viagem nada me desanimaria, talvez porque o sangue africano que corre nas veias dos brasileiros tenha a propriedade de inebriar o coração de um irmão. Diferentemente do Brasil, a independência angolana é de conquista recente, sendo uma jovem república de quase trinta anos, vitima do injusto colonialismo que escravizou a África. A liberdade foi adquirida através de um revolucionário movimento de contestação, após a portuguesa Revolução dos Cravos, tento com um dos líderes o socialista Agustinho Neto. E, para mantê-la socialista e livre, como sonhada pelos libertadores, enfrentou uma violenta guerra civil apoiada abertamente pelos EUA, que patrocinava um dos lados, deslavadamente de olho na Guerra Fria e no rico solo africano. Antes de chegar em Angola, passo em Portugal, não coincidentemente o país que durante anos explorara e colonizara Angola. Para os brasileiros, visitar Portugal é sempre um prazer, mesmo porque tem o gosto saudoso de uma visita à casa de nossos avós, sempre aberta e simpática aos seus netos, embora algumas vezes de forma ranzinza. Era uma parada estratégica para acalmar o corpo, já cansado de uma viagem que durava mais de quinze horas, além de outras dez para enfrentar. Ainda em Lisboa, sozinho e tendo como parâmetro a violência das terras brasileiras, perguntei ao recepcionista do hotel onde poderia jantar com segurança. Indicou-me o já conhecido Cais do Porto, uma antiga região de armazéns portuários transformada em um belo ponto turístico. Aceitei a sugestão e peguei um daqueles táxis estrategicamente estacionados nas portas dos hotéis e rumei para a região indicada. Mais uma coincidência, o taxista era angolano, residente em Lisboa há mais de trinta anos. Era um dos fugitivos das várias guerras que destruiria o seu país, fazendo-o sentir saudade e mais seguro com o rico colonizador. Aliás, ele fez questão de assim demonstrar, pois durante o trajeto me mostrara, orgulhoso, o que dizia ser o maior shopping da Europa (Colombo), assim como a sua maior ponte, que, para meu orgulho também, recebera o nome do meu Vasco da Gama. Não é preciso dizer que lá encontrei as várias franquias de restaurante e bares que se esparramam pelo mundo, tornando monótono e absolutamente igual o paladar. E para não perder a coerência européia, no branco e louro mundo que elegantemente desfilava no cais do porto, alguns africanos e indianos a vender produtos que aqui seriam identificados como paraguaios. Quando, finalmente retornava ao meu destino original ansioso para saber o que me esperaria no continente africano, meu pensamento foi despertado pelo taxista que me levava ao aeroporto de Lisboa. Depois das desorganizadas e quase intermináveis filas do Aeroporto Internacional de Portugal, impressionado com a enorme lista de espera de pessoas que queriam embarcar e não conseguiam, no avião sou premiado com o Bolero de Ravel, presente nos grandes momentos da minha apaixonada vida. Interpreto a música como sinal de que estarei começando uma grande viagem, uma excelente lição de vida para este propriaense. * Cezar Britto, é advogado e secretário-Geral da OAB
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