Finalmente o avião decola com destino a Luanda, fazendo combinar a nuvens que bailam no céu com o Bolero de Ravel que contagia os passageiros. A Conferência dos Advogados Angolanos me espera – pensei sorrindo – para comandar o grande final desta sinfonia mágica. E como se estivesse a brindar meu maroto pensamento, uma alegre criança, provavelmente angolana, grita e pede que o seu irmão sintonize o Canal 8, que estava tocando a boa música brasileira.
Mas o encanto, infelizmente, não durou muito, pois cuidou um vizinho de poltrona, um simpático socialista português que trabalhava em Angola há mais de dez anos, de restabelecer a ordem das coisas. Embora não conseguisse esconder a sua irritação pelo fato de que a sua esposa não embarcara, por estar na lista de espera do avião por mais de um mês, perguntou-me se eu era escritor ou autor de alguma das várias novelas brasileiras que eram exibidas em Angola. Sua observação certamente foi motivada pelo fato de que eu não parava de escrever no meu velho palm, querido e inseparável companheiro de viagem.
Sendo ele um sobrevivente da guerra e do já desgastado governo socialista angolano, pediu-me que tivesse cuidado com o que escrevesse, filmasse e falasse quando estivesse em solo, como, aliás, já me havia advertido o taxista que morava em Portugal. Pediu-me, também, que tivesse cuidado com os assaltos, embora os angolanos gostassem e se identificasse com os brasileiros, inclusive porque vários deles moravam no país, grande parte contratada pela Odebrecht, a maior construtora do país.
Mais uma vez fiquei preocupado, pois não sabia o que me esperaria em Angola, embora continuasse ansioso para conhecer e fazer as pazes com a minha irmã africana, afastada de mim pelo tempo e pelo cruel tráfico de homens que mancharam de branco a nossa História. Estava agora, como acabara de anunciar o comandante do avião, me aproximando do solo africano, onde como um verdadeiro São Tomé, que ousou dizer que precisava “ver para crer”. Em poucos minutos fincaria os meus pés propriaenses em Angola, carregando uma mala abarrotada de receios, dúvidas e esperanças.
De fato, como anunciado, cheguei em Angola com uma hora de atraso, sabendo que poderia me considerar um felizardo, pois centenas de angolanos não conseguem voltar para o seu país por falta de vaga nos três únicos vôos diários autorizados a pousar ou decolar. É o velho descaso do rico mundo ocidental para com os sentimentos daqueles que estampam no corpo a diferença da cor. Um pouco também da pincelada preconceituosa da cor que mais se sobressai na aquarela da vida, pois não deixa de ser uma forma de evitar colorir o “branco superior” endeusado no mundo ocidental.
Em solo, reconheci que fiz uma viagem tranqüila, salvo na questão da maratona aérea que submeti ao meu corpo. Comentei o fato com o trabalhador português que viajara na poltrona vizinha, motivando nele o registro, em tom de brincadeira, de que a viagem não havia terminado, pois no Aeroporto Internacional de Luanda as únicas coisas que funcionavam eram correrias e confusões. Gozação ou não, ele tinha realmente razão, pois nunca passei pela experiência de um aeroporto tão ilógico e desorganizado, apesar da ajuda solidária do meu amigo pelo português.
Quando me preparava psicologicamente para passar pela alfândega e recolher as bagagens, fui mais uma vez “socorrido” inesperadamente, agora por um servidor da Embaixada Brasileira em Angola. Sabendo o embaixador brasileiro da presença da OAB em Angola, bem assim da desorganização aeroportuária, cuidou ele de colaborar com a equipe da Ordem dos Advogados Angolanos na minha recepção. Julguei depois que ambos foram providenciais, pois a tarefa de identificação das bagagens equivale a quebra-cabeça de milhares de peças confusas, o que me fez imediatamente lembrar da mala perdida em Cabo Verde, outro irmão africano.
Outra grande vantagem foi ter garantido o translado para o hotel, pois os taxistas oficiais são conhecidos como kandoqueiros, que fazem luxuosos os nossos amarrotados ônibus e seguras as clandestinas topiques. Durante o trajeto, percebi que várias informações eram visivelmente exageradas, pois a cidade de Luanda tem o mesmo cheiro de outra qualquer, sendo que as mortais minas que a diferenciava estavam sendo combatidas e controlas, sendo praticamente inexistentes na capital. E assim cheguei ao hotel já no avançar da noite, exausto e alegremente seguro, consciente de que muito aprenderia e ensinaria naquele país.
* Cezar Britto, é advogado e secretário-Geral da OAB