O meu primeiro e efetivo dia em Luanda começou bem, após um bom e reforçado pequeno-almoço (como eles chamam o nosso café matinal), em companhia dos bastonários (presidentes para eles) da Ordem dos Advogados de Moçambique e de Cabo Verde, além dos representantes da Ordem dos Advogados de Portugal. Chegamos pontualmente no Congresso Nacional de Angola, local onde seria realizado o evento, onde já nos aguardavam mais de trezentos conferencistas inscritos, metade dos advogados do país. No percurso pude perceber que vários edifícios estavam em construção, destacando-se a imensa e luxuosa sede da multinacional brasileira Igreja Universal do Reino de Deus, especializada em “curar as dores dos menos favorecidos”. Durante a I Conferência dos Advogados Angolanos, todos os convidados concluíram que estavam participando de um grande e empolgante evento jurídico, certamente um dos mais importantes daquele país. Ficamos impressionados com a qualidade da discussão, com as excelentes intervenções e com as abalizadas proposituras encaminhadas pelos advogados africanos ali presentes. Concluímos, também, que o Poder Judiciário e a advocacia angolana passariam por profundas mudanças depois daquele encontro, mesmo porque também freqüentado por magistrados, promotores e estudantes. E não poderia ser diferente, pois os angolanos sofrem os mesmos problemas que atingem cruelmente os brasileiros menos favorecidos economicamente, especialmente no que se refere ao acesso Justiça e ao insaciável abuso de poder que tanto atrai governantes e dirigentes públicos. Ainda mais em um país devastado pela guerra civil, em que a maioria absoluta de suas cidades não tem sequer um advogado para desempenhar o fundamental papel de defesa da cidadania. Não foi sem razão, portanto, que os advogados firmaram o compromisso de efetivamente combater a crônica fome angolana, pois ainda faminta de Paz, Justiça, solidariedade e comida. Terminada Conferência, um dos organizadores levou a delegação estrangeira para um rápido city-tour pela cidade, pois corríamos o risco de voltarmos para a nossa terra sem nada conhecer de Angola. O passeio pelas ruas de Luanda se deu no horário noturno, buscando-se cobrir alguns pontos turísticos da cidade, como, por exemplo, a ilha, a orla, as igrejas, os prédios públicos e monumentos dedicados aos heróis da independência. Embora não tenhamos descido em quaisquer destes lugares, ficamos encantados com a cidade, nos dando a sensação de que era calma, limpa, repleta de prédios históricos e novos, demonstrando que cresce na mesma velocidade desenvolvida pela grande frota de carros modernos e caros que circula em suas ruas. Porém, despertamos para a realidade no dia seguinte, quando saímos para comprar algumas peças do artesanato angolano, o que nos fez percorrer os mesmos caminhos da noite anterior. Luanda, descoberta do véu da noite, se apresentou de corpo aberto, sem qualquer maquiagem ou disfarce destinado a impressionar paqueras eventuais. E realmente não tem como esconder os graves problemas causados pelas doenças e miséria que atingem Luanda, ainda mais quando sua população inicial de seiscentos mil habitantes saltou inesperadamente para quatro milhões, quase todos vítimas do êxodo provocado pela guerra civil. Favelas e sujeira encobrem as paisagens naturais, borrando com o pincel da insensibilidade humana a bela aquarela que haviam pintado na noite anterior. O novo quadro que surge retrata as tortuosas ruas angolanas, simultaneamente transformadas em moradias, lazer e comércio dos seus habitantes. Nelas, ganham um colorido especial os zungueiros (ambulantes) a vender todos os tipos de produtos inimagináveis, sonhando com o dinheiro dos kukinguileiros, pessoas que ficam sentadas em tamboretes a emprestar kwanza (moeda local) a quem dele precisar. Confesso que não entendi a idéia protecionista das autoridades locais, pois, apesar de encontrarmos em todos os lugares visitados pessoas vendendo e expondo incontáveis peças de marfim, inclusive em órgãos e empresas oficiais, nos avisaram que é proibido ao turista trazê-las em suas bagagens. Dizem que assim protegem os elefantes, embora aceitem que morram para preservar o consumo interno e o olhar invejoso de alguns turistas. Enfim, cumprida mais esta tarefa, fechei as malas, agora repleta de novas e inesquecíveis experiências, sabendo que o retorno ao Brasil apenas começava. * Cezar Britto, é advogado e secretário-Geral da OAB
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