Certo dia, já bem distante, ainda morando na minha querida Propriá, resolvi escrever um diário que entendia urgente, original e assumidamente precavido. Na época, com apenas dez anos de idade, sabia que o futuro era inevitável e, com ele, logo eu seria transformado numa das centenas de pessoas adultas que vagavam pela cidade. Conhecendo-as apenas através do meu olhar de criança, percebia que o avançar da idade coincidia com o regredir da liberdade. Os adultos, segundo compreendia, eram escravos do trabalho, servil aos seus próprios problemas e incapazes de penetrar no feliz mundo das crianças.
Aliás, era exatamente esta a motivação do diário. Como antevia que era impossível, salvo trágico e não desejado acidente de percurso, evitar o meu ingresso no templo dos adultos, o diário serviria para registrar as minhas observações sobre as coisas da minha cidade segundo a ótica de uma criança de dez anos. Assim, quando adulto, obviamente já esquecido do que rezara na cartilha infantil, teria à minha disposição uma missa inteira para pregar. E registrava tudo e todas as coisas que entendia relevante. O pouco espaço para brincarmos e as brincadeiras conquistadas, a incompreensão sobre a utilidade das matérias ensinadas na escola, o distanciamento e infalibilidade dos adultos, as filas da padaria, as brigas entre nós e como eram resolvidas, as animadas campanhas políticas, os filmes exibidos, os campeonatos de pelada e os veículos que, embora reduzidos, ameaçam nos atropelar. Enfim um pouco de tudo, o muito do meu mundo infantil.
O tempo passou, a adolescência chegou sem ânimo de ficar, fazendo-me um adulto de quarenta e quatro anos. No avançar da vida, dos fatos, dos pensamentos e das propostas as percepções evoluíram em proporções idênticas. Aracaju concordou em ser minha nova moradia, estudei, tornei-me advogado, fiz novos amigos, namorei, casei, filhos nasceram, plantei árvores e escrevi outros textos e diários. Mas o diário escrito na cidade de Propriá ficou esquecido no passado distante. Não sei onde está escondido, o seu conteúdo ou mesmo as conclusões registradas. O diário, como vaticinou a sua exposição de motivos, se perdeu no avançar da insensibilidade adulta.
Lembrei-me dele somente agora, mais precisamente na domingueira noite que anunciou o mês de outubro. Paradoxalmente em função da inesperada agitação noturna que, subitamente, a transformara num sábado de embalo. Uma noite em que se falava em mudanças, rupturas com estruturas fincadas por décadas, conquistas de gerações, novas formas de agir e, sobretudo, em esperança do nascimento de um novo pensamento. Resumindo em outras palavras: pelo clima contagiante de alegria, tudo lembrava os tempos de infância, onde todos podiam livremente cantar, brincar, projetar e sonhar novos tempos, simultânea e coletivamente.
Não era sem razão esta alegria coletiva, não sem motivo a lembrança do diário perdido. O anúncio da vitória de Marcelo Déda como futuro governador de Sergipe indicava que um novo diário começaria a ser escrito. Mais ainda, redigido por alguém que, também nascido numa cidade do interior (Simão Dias), chegou a Aracaju carregando um “matulão” repleto de esperança, rebeldia, resistência e desejo de mudança. A esperança de que a ditadura militar desaparecesse do dicionário político brasileiro, fazendo da liberdade democrática o seu mais novo jargão. A rebeldia que o fazia um agitado líder do já inquieto movimento estudantil, uma voz que se destacava na altiva multidão. A resistência que o motivou a fundar um partido político com sólida base social, tornando-se, logo cedo, um dos políticos mais influentes de sua geração. E o desejo de mudança para a sua cidade, seu Estado, seu país e seu mundo, consolidado na militância ativa que sempre vivenciou.
Não sei se Marcelo Déda escreveu algum diário sobre as suas caminhadas, durante o cruzar pela extensa estrada da vida ou mesmo pelo vaguear do tempo. Tampouco sei o que guardou arquivado na sua memória no avançar da sua maturidade política. Desconheço o que pensa anotar na História de sua vida, agora que elevado à condição de escritor-mor. Não sei, sequer, da necessidade de se recorrer à leitura de um diário antigo para que se administre o Estado de Sergipe.
Apenas sei que a sua responsabilidade de Déda como escritor é muito grande, pois tem, agora, a tarefa de retratar em ação o sonho de sua geração, assim como interpretar os sinais emitidos pelas pessoas que viveram e conviveram em outras épocas. Sei, ainda, que as crianças que hoje escrevem os diários que servirão de guias para suas próprias vidas terão no adulto Marcelo Déda uma fonte de inspiração. Sei que diários são escritos todos os dias, acabados ou por ainda acabar. O diário de Déda, pela matula trazida, tem tudo para se transformar num grande best seller..