Direito, Política e Religião

Na filosofia, a modernidade caracteriza-se pela pulverização do racionalismo ocidental em todas as esferas da sociedade e da cultura, abrindo espaços para formas de vida bem diferentes das tradicionais.[1] A modernidade filosófica significa, enfim, a substituição do dogma religioso pela razão como última instância da verdade.[2]

 

Com efeito, no momento em que toda a explicação para o governo dos homens em sociedade se desvincula, por completo, de qualquer vinculação divina, tem-se finalmente a superação medieval e o advento da modernidade.

 

O Estado laico é conseqüência da modernidade. As Igrejas continuam a existir, como instituições – ao lado de outras tantas instituições sociais – porém não mais integram a estrutura jurídico-política do Estado. Os governantes deixam de ser legitimados pela crença de que são os representantes de Deus na Terra (ou o próprio Deus). Os preceitos religiosos servem como preceitos morais, seguidos por quem tenha a fé religiosa. Mas os preceitos religiosos não servem como prescrições normativas para as condutas sociais. O que é permitido, proibido ou obrigatório, na sociedade moderna, não é estabelecido pelas prescrições religiosas, mas pela vontade laica da sociedade, traduzida na norma jurídica revestida da forma de lei.

 

A República Brasileira é laica, ao menos formalmente, desde a sua promulgação. A Constituição de 1891 previu a separação Estado-Igreja (relação estabelecida como umbilical pela Constituição do Império). Nessa mesma toada a Constituição Republicana de 1988, em vigor. Admite-se a liberdade religiosa, de crença e de culto como manifestações da liberdade de pensamento e de expressão. Mas a liberdade de crença e de culto não tornam o Estado – nem tampouco a sociedade – tutelado por preceitos religiosos.

 

Nesse contexto, é lamentável perceber que a campanha eleitoral para a disputa presidencial, no segundo turno, começa pautada por temas religiosos. Aborto, crença em Deus, comunhão, missas, são temas que têm tomado conta dos debates eleitorais. Candidatos negam ou escondem suas convicções a favor da descriminalização do aborto (como medida de política de saúde pública, a permitir mais claramente que o SUS possa efetuar os procedimentos médicos abortivos devidamente regulamentados, de modo a permitir que as mulheres mais pobres não se submetam a procedimentos que colocam as suas vidas em risco) com receio de perder votos de fiéis.

 

No moderno Estado laico, a definição de políticas públicas deve ocorrer a partir de debates totalmente desvinculados de concepções religiosas ou divinas. É a sociedade terrena que deve estabelecer as suas regras de convivência. Que se discuta a proposta de descriminalização do aborto, pois na sociedade democrática toda e qualquer proposta de lei ou de política pública deve ser exaustivamente debatida pela sociedade até deliberação final e posterior execução. Mas que isso seja efetuado na perspectiva terrena da razão e não na perspectiva de dogmas religiosos, inegociáveis por definição e portanto refratários à política.

 

Submeter o debate político republicano e democrático à religião é retroceder mais de duzentos anos na história. O Brasil não merece esse retrocesso.


[1] Cf. Max Weber, in “Modernidade e crítica em Habermas”, Romero Venâncio, p. 1.

[2] Cf. Agostinho Ramalho, “Hobbes e a Teoria do Estado”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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