O presidente Lula assinou com toda a pompa que o ato merecia, medida provisória ordenando o pagamento de uma dívida superior a doze bilhões de reais. A idéia do Governo Federal é dar um basta na injusta agressão cometida contra milhões de aposentados e pensionistas brasileiros que, heroicamente, lutavam para que fosse reparada a lesão causada nos seus parcos proventos. É que, como se sabe, não foram pagos corretamente os benefícios concedidos no período compreendido entre fevereiro de 1994 e fevereiro de 1997. A decisão presidencial acaba com o sofrimento de cidadãos que construíram a nossa História e de quebra, revoga as quilométricas e humilhantes filas humanas que abarrotavam os corredores da Justiça Federal. Não acaba, entretanto, com algumas perguntas que teimam em permanecer nas cabeças daqueles que penaram para receber o que já se sabia devido. Também não revoga as dúvidas dos que, incrédulos, descobriram que o seu pobre país vai desembolsar uma fortuna inimaginável, desfalcando os já minguados recursos destinados aos programas sociais. Afinal, como se construiu a dívida que se promete agora pagar? Por que não foi paga antes? Quem deu causa a este grave prejuízo? Quem humilhou os aposentados brasileiros? Será que seremos surpreendidos com outras dívidas semelhantes? Os governos federais, estaduais e municipais estão adotando medidas para que novas dívidas sejam evitadas? Quem ressarcirá o erário pelos prejuízos causados? Será que haverá mesmo punição? Não é sem razão que estas indagações permanecem, mesmo porque não se constrói uma dívida de doze bilhões de reais da noite para o dia. Tampouco brota espontaneamente da terra, tornando-se uma incontrolável erva-daninha a destruir a lavoura da dignidade humana. Não, a dívida germinou porque foi plantada e irrigada pelas mãos não-agricultoras de governantes que poderiam tê-la pago no exato momento em que surgiu ou foi reconhecida pelo Poder Judiciário. Aliás, no fértil solo brasileiro, sem medo de errar, as dívidas públicas florescem porque os nossos agricultores utilizam o desprezo à cidadania como adubo principal. Não se importam com a qualidade da safra que será colhida, assim como não se preza o direito do cidadão como uma fruta a ser acolhida. A técnica agrícola adotada é aquela que conhecemos como “empurrar o problema com a barriga”, deixando o abacaxi para ser colhido, apodrecido ou descascado pelo próximo plantonista. Outro método bastante utilizado, talvez o mais perfeito e complexo de todos, é fazer do processo judicial uma lavoura que nunca poderá ser aproveitada. Para isso os agricultores-processuais abusam dos agrotóxicos e dos recursos protelatórios, plantando ervas-daninhas e esmagando qualquer perspectiva do plantio prosperar. E quando a natureza reage fazendo ressurgir a esperança, ainda que diminuta, cuidam eles de alardear que descobriram novas e eficientes técnicas, aplicando-as imediatamente na moribunda plantação. E o grave é que não aprendem com a lição, pois o prejuízo causado pela transformação de um brotinho de dívida em uma floresta de ervas-parasitas parece não ter afetado os “agricultores-processuais’ da coisa pública. Basta observar que permanecem aumentando as dívidas públicas em várias outras lavouras judiciais, como bem sabem aqueles que lutam para recompor os valores confiscados nas contas do FGTS e as cobranças tributárias e previdenciárias indevidas. Não lembram a regra popular que ensina que dívida é feita para ser paga, não é coisa para se plantar, irrigar e deixar que outro pague, passe adiante ou esqueça. Temos agora bilhões de motivos para reverter o quadro, demonstrando que a vocação agrícola brasileira deve ser estimulada em outra área, não naquela que somente brota calote e o desrespeito ao cidadão. É hora também, do Poder Judiciário recusar ser transformado em campo de teste para os experimentos agrícolas daqueles que tratam a cidadania como uma fruta estragada, proibindo e punindo quem assim age. Chegou o tempo de se compreender que a Constituição Federal plantou em nosso solo o Estado Democrático de Direito, não mais aceitando que sejam cultivadas as sementes da infalibilidade, do desprezo e do absolutismo estatal. * Cezar Britto é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear. cezarbritto@infonet.com.br