Eles não comem criancinhas

 

Ainda pequeno, na minha querida Propriá, sempre era advertido quando pretendia brincar na rua com os meus inúmeros amigos. Naquela época, na plenitude dos  anos sessenta, o perigo não estaria  na violência urbana ou no risco de ser assaltado por algum adolescente abandonado. O nosso inimigo era até então um sujeito oculto, desses criados para assustar a rebeldia natural de uma criança em busca de conhecer o desconhecido. Este inimigo invisível era pior do que o famoso Bicho-Papão ou o assustador Lobisomem, pois poderia atacar a qualquer instante, seja noite, seja dia. E o ultimato para que não saíssemos de casa, exatamente por sua periculosidade, era mais ou menos assim: – Não saiam, pois a rua está cheia de “comunistas” e eles gostam de comer criancinhas.

 

Os “comunistas” eram os tais monstros que nos impediam de livremente brincar pelas ruas de Propriá. Não sabíamos quem eram e o que faziam para devorar criancinhas, mas esta hipótese era assustadora demais para que pudéssemos arriscar. E assim ficamos longo tempo, até que, já com dez anos de idade, passando por uma delegacia, descobri as primeiras imagens dos terríveis “comunistas”. Os seus rostos estavam colados em dois cartazes fixados na parede da delegacia. Não pareciam assustadores, como sempre tinha imaginado. Tive até a impressão de que cada um deles guardava semelhança com algum parente ou conhecido meu. Não passavam de simples  jovens, como eram os jovens que moravam em minha cidade. Mas deviam ser terríveis, pois os cartazes diziam: “Procura-se”, “Vivo ou morto” “Terroristas”.

 

Cinco anos depois, estudando no Atheneu, em Aracaju, os “comunistas” deixaram de ser apontados como monstros imaginários, sendo agora tratados como perigosos “subversivos”. Ainda assim eram invisíveis, pois não conhecíamos nenhum. E permanecemos alheios até que o nosso melhor professor, o mais competente e querido de todos, foi repentinamente acusado de “comunista”. Foi chamado para depor. Corria nos corredores o boato de que fora torturado. Ele nunca nos disse. Mas depois desse episódio o assunto deixou de ser um tabu. Todos os dias novos “comunistas” eram denunciados, inclusive alunos mais adiantados. Por “estranha coincidência” os “comunistas” eram aqueles que defendiam os estudantes e falavam em liberdade e igualdade, produtos escassos em tempos de autoritarismos. Os “comunistas” eram as nossas referências, assim como vários dos nossos amigos. E eles nunca comeram criancinhas.

 

Quando ingressei na UFS no ano de 1981, agora como estudante de direito, os “comunistas” eram mais visíveis e assumidos. Continuavam sem comer criancinhas, embora permanecessem se alimentando de liberdade e igualdade. O curioso é que ao ingressar no movimento estudantil, também passei a ser chamado de “comunista”. Na época, “comunistas” eram todos que faziam da ação um espaço de luta contra o autoritarismo, portando no coração a esperança de um Brasil mais justo e igualitário. Acreditava-se, assim, que todos os “comunistas” eram “comunistas de carteirinha”, mesmo quando disputavam espaços distintos na política estudantil.  O meu grupo de atuação, por ser libertário, nunca foi “comunista”. Dentre os “comunistas de carteirinha” que conheci no movimento estudantil, e não foram poucos, se destacava o estudante de medicina Edvaldo Nogueira, posteriormente presidente do DCE e dirigente do PCdoB.

 

A História fez do dia 31 de março, data do Golpe Militar de 1964, um dia destinado à reflexão, especialmente para que nunca seja repetido. Cuidou também de denunciar seus crimes, embora, contraditoriamente, mantenha secretos seus arquivos. Não se descuidou ela de revelar a mentirosa trama que envolvia a condenação dos “comunistas”, vários deles ainda desaparecidos nos porões resistentes dos amantes do autoritarismo. Fez até, ironicamente, questão de mostrar os erros de vários destes “comunistas”, alguns deles iludidos pelo sonho de uma sociedade imposta por burocratas travestidos de socialistas.

 

Mas a História, conservando a mesma ironia, outra vez escolheu o mesmo 31 de março para homenagear os antes perseguidos “comunistas”. Escolheu, sabiamente, este dia para registrar em suas páginas o ato que fez Edvaldo Nogueira o primeiro “comunista” empossado como prefeito de uma capital brasileira. Talvez pedindo perdão pelas perseguições e injustiças cometidas. Talvez para demonstrar que nenhuma ditadura, ainda que apelidada proletária, pode substituir a via democrática. Talvez para permitir que Edvaldo Nogueira, prefeito de Aracaju, possa cuidar das criancinhas, derrubando preconceitos plantados ao longo do tempo, garantindo que elas possam viver em uma cidade fraterna, livre e igual para todos. Talvez para que simplesmente digam que “comunistas” não comem criancinhas. Talvez por outros motivos, ainda não decifrados no escrever da própria História.

 

 

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