O meu gostar pelo cinema guarda a mesma relação de coerência que mantenho com os livros e com a música, sem tirar nem por. Mantenho com todos eles o mesmo tipo de relacionamento livre, franco e aberto, sem permitir que brotem aquelas famosas cobranças de fidelidade que teimam contrariar os parceiros que se gostam. Tampouco nos apegamos ao mesmo estilo ou jeito de encarar as coisas, nos aventurando a experimentar novas receitas ou aventuras artísticas. Drama, comédia, clássico, documentário, besterol americano, vida real, ficção, desenho animado, musical, suspense, terror, aventura, cowboy, best-seller, gibi, romance, esoterismo, religião, cultura inútil, lista telefônica, forró, samba, MPB, rock, reggae, instrumental, jazz, toada, dentre outros, convivem harmoniosamente, sem qualquer trauma ou sentimento de rejeição. E como no cinema também posso saciar o meu antigo vício de consumir a branca pipoca, geralmente devoro todos os filmes exibidos semanalmente na tela-grande. Não raro aproveito para reencontrar alguns amigos que também curtem a sétima arte, a exemplo de Thenisson Dória e Maurício Gentil, colhendo deles dicas preciosas para novos filmes. Também faço do cinema uma oportunidade de conviver com os meus filhos, o que nos faz parceiros de muitas aventuras e conversas posteriores. Em função deles conheci o fantástico mundo de Zion (Matrix), freqüentei a Hogwarts School (Harry Potter), desbravei a Terra- Média (Senhor dos Anéis) e voltei à Nova Iorque dos meus tempos de guri (Homem-Aranha). De quebra, mostro a eles a genialidade do artista brasileiro que, mesmo sem os recursos dos estúdios estadunidenses, conseguem fazer com que o “tempo não pare” (Cazuza) na acomodação submissa, até porque o Brasil e o seu povo têm para ensinar. A semana que passou bem ilustra este meu relacionamento simultaneamente descomprometido e afetuoso com o cinema. Com o claro objetivo de atrair o meu filho Ruan para o mundo da ecologia e das coisas nordestinas, aprendendo de cedo a importância da natureza, o convidei para assistir ao filme “Espelho D´Água – Uma Viagem pelo Rio São Francisco”, dirigido por Marcus Vinicius Cezar. Como não tinha qualquer referência sobre a qualidade do filme, salvo a que comercialmente constava da sinopse fornecida pela empresa exibidora, usei com atração inicial a presença do seu primo Rodrigo, uma grande companhia nas horas de diversão. Ainda assim resolvi arriscar, pois me chamou a atenção a promessa de que o filme trataria da anunciada morte do Velho Chico, bem assim contaria um pouco de sua história e mitos. Acertei em cheio, vez que o filme é de uma beleza excepcional, conseguindo refletir, como bom espelho, a alma do Grande Rio, retratando, de quebra, a própria imagem do ribeirinho. Marcus Cezar teve o cuidado de não espelhar aquele nordestino espalhafatoso e caricaturado que as novelas globais adoram exibir, em que se confunde identidade cultural com ignorância secular e irreversível. É claro que não descuidou do carinhoso sotaque que diferencia os que aqui nascem, da magia alegre de uma feira, das paisagens que encantam, do humor cativante dos nativos ou da beleza centenária da alagoana Penedo. Mas, sobretudo, o filme cuidou narrar, com ricos detalhes, a personalidade de um povo que ama o Rio, as coisas que dele nascem e a esperança que ainda teima navegar por suas águas. Tanto é assim que um dos pontos altos do filme é o diálogo de Henrique, o personagem vivido pelo global Fábio Assunção, com o ribeirinho Candelário, tão-bem representado pelo sergipano Severo D´Acelino. É imperdível a lição acusatória do ribeirinho, fazendo-nos compreender que é necessário lutar pela conservação da natureza, ainda quando o Governo Federal permanece querendo fazer a questionada transposição das águas do Velho Rio. E o que é mais interessante, todos os cinéfilos presentes, independentemente de suas respectivas idades, compreenderam perfeitamente a beleza do filme. E como o espelho somente reproduz o que enxerga, com certeza o nosso campo de visão aumentou depois do filme, especialmente o meu gabola e curioso olhar nordestino. * Cezar Britto é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear. cezarbritto@infonet.com.br