A OAB e a CNBB, parceiras de longa data, se reuniram com o objetivo de discutir e buscar medidas que pudessem permitir a intervenção e contribuição efetiva das duas entidades na solução da caótica e desesperada situação que aflige os habitantes do Rio de Janeiro, especialmente aqueles que são obrigados a viver em favelas. É evidente que as duas entidades não têm a ingenuidade de que, sozinhas, resolverão os problemas ali expostos, por isso, sabiamente, anunciaram que buscariam parceiros nesta nova empreitada. E não poderia ser diferente, pois sabem que a questão é extremamente complexa, mesmo porque a violência que explode nas ruas cariocas é a causa mais visível dos anos de omissão, insensibilidade e deliberado abandono de seres humanos, todos eles condenados a viver no mais completo isolamento social, cultural, político e econômico. Estão corretas as duas entidades, pois as favelas brasileiras padecem com a óbvia e já confessada ausência do Poder Estatal, presente apenas nas cíclicas promessas eleitorais. Mas não é só, sofrem também com a indiferença com que a sociedade sempre tratou a questão da exclusão, nunca se incluindo como responsável pela causas ou solução dos problemas. As favelas brasileiras são vítimas, portanto, de um Muro construído com os tijolos da omissão estatal, cimentado com a indiferença da sociedade. As favelas sempre foram tratadas como problema exclusivo dos favelados, mesmo porque à sociedade só interessava saber da sua utilidade isolacionista, ou melhor escrevendo, que serviam para afastar seus moradores das famosas ruas, praias, teatros e shoppings brasileiros. A interação da favela com o mundo exterior, no máximo, somente foi permitida para exportasse a sua mão-de-obra barata ou a musicalidade controlada nos clubes, bares, gravadoras, produtoras e shows lucrativamente planejados. Em síntese: a favela era, e ainda é, um cômodo gueto social, cercada por rígidos muros, cujos portões somente são abertos de forma controlada e não ameace a segurança da “boa sociedade”. No Rio de Janeiro, principalmente lá, a fórmula foi alterada quando alguns habitantes das favelas perceberam que Muro do Isolamento poderia ser derrubado com a mesma eficiência com que se fez cair o Muro de Berlim. Porém, para desencanto de muitos, se descobriu que a turma que comandou a sua derrubada não estava preocupada em restabelecer a liberdade, a esperança e dignidade dos moradores das favelas, tornando-os membros ativos e integrados na própria sociedade carioca. Ao contrário, o novo grupo manteve os moradores das favelas aprisionados, continuando a isolá-los dos demais membros da “boa sociedade carioca”. Estabeleceram, ainda, um novo “relacionamento diplomático” com o Estado do Rio de Janeiro, em que este abdicava de sua negligente soberania, recebendo, em troca, a garantia de que não seria invadido pelos favelados ou ameaçado pela força bélica dos novos governantes. Tiveram até um “ganho extra”, pois criado um novo corredor livre para exportação de novos produtos “made in favela”, mais especificamente o fornecimento de drogas e armas para os moradores do outro lado do Muro. Como era de se esperar, o novo “pacto de convivência-conivência mútua” não fora contestado pela sociedade, mesmo porque apenas legitimava o que de fato ocorria nas favelas cariocas, que de muito já eram governadas por bicheiros e traficantes. Hoje, para desespero dos acordantes, os fortalecidos “novos governantes” quebraram a trégua ou o pacto de boa convivência que mantinha como o aparelho estatal, passando a agir diretamente no mundo que isolou a favela. Diariamente demonstram que não estão brincando, fazendo das ruas do Rio de Janeiro verdadeiras terras de ninguém, paradoxalmente aprisionando em suas casas a sociedade que havia criado, confiado ou apostado na eficiência do derrubado Muro. Sentem, agora, a dor, o medo e a desesperança que sempre marcaram os moradores das favelas. O exemplo do Rio de Janeiro demonstrou que não podemos manter a política de isolamento das favelas, construindo Muros de Isolamento ou transferindo a tarefa de administrá-las para os bicheiros e traficantes. Revelou, também, que a violência policial ou ordem para o Exército invada as favelas não resolve o problema, podendo até agravá-lo, especialmente se servido apenas para reconstruir o Muro derrubado pelos traficantes. A lição que devemos tirar, já compreendida pela OAB, CNBB e milhares de entidades e cidadãos é a de que devemos derrubar muros, lutando para que os moradores das favelas brasileiras sejam tratados como cidadãos dignos, gozando dos mesmos direitos e benefícios dos demais brasileiros, até que a pobreza e a desigualdade sejam páginas viradas na nossa História. * Cezar Britto é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear. cezarbritto@infonet.com.br