Feliz Natal

Véspera de Natal. E não vou sair de dentro da minha casa até que isso acabe. As pessoas lá fora me parecem todas ensandecidas, subitamente contaminadas por algum estranho vírus que lhes arrancou fora a sensatez. De dentro de casa, vejo os carros zunindo na avenida, com muita pressa de ir a algum lugar – e nenhuma gentileza é possível.

Todos os seres humanos parecem se amontoar em templos de compra e venda. Estranha forma de comemorar o nascimento de um deus. Shoppings superlotados, lojas cheias, marés de gentes com muitas sacolas na mão se derramando pelas ruazinhas estreitas do centro da cidade. Compra-se e vende-se de tudo: comida, bebida, ilusões, roupas novas, presentes, sonhos, uma nova aparência. E para tudo isso, vai-se de carro. Carros, muitos carros, em todas as ruas, em todos os cantos, parando as ruas, impedindo a vida de fluir. Todos com muita pressa. E todos nervosamente parados.

Nas cozinhas das casas, famílias em pé de guerra preparam panelas e mais panelas de comidas, animais mortos para todos os gostos, e açúcar (salvem as rabanadas! Não há natal sem rabanadas!), muito açúcar para deixar todas as crianças ainda mais acordadas nessa noite que nunca termina. Haverá mesa farta, haverá panetones e rabanadas, haverá piadas sobre pavês e, por trás disso, se você observar atentamente, se esconde também um certo ranger de dentes, de mágoa guardada, raiva remoída, só esperando o tempo certo, a palavra errada, para explodir numa daquelas clássicas brigas de família na noite de natal.

Embaixo das árvores de plástico com enfeites feitos por chineses semi-escravizados, amontoam-se pacotes embrulhados à espera de alguma alegria possível. Estranha forma de demonstrar afeto: artefatos plásticos, papéis coloridos, lixo adiado. Estranha forma de falar de amor é ensinar às crianças que um velhinho gordo de roupas ridiculamente quentes virá trazer presentes na noite de natal. Mais artefatos de plásticos fadados a se tornarem inúteis em alguns meses ou dias. São estranhas formas de carinho, estranhos rituais.

E momentos antes da ceia, haverá sempre alguém da família, imbuído naquele mesmo espírito do solitário homem que perambula pelo centro da cidade com um cartaz a anunciar o fim do mundo, que reclamará entredentes que o aniversariante não foi convidado para a festa. Uma frase feita que ajuda a compor esse estranho ritual, na verdade.

Porque de fora de tudo isso ficou mesmo foi a própria humanidade. Não há nessa festa insana espaço para a tradição ancestral da comunidade que se reúne para reverenciar um deus que nasce. E assim, ficam de fora também a gentileza, gratidão, compaixão, o amor presente no gesto simples de demonstração sincera, a roda de conversa que transmite uma memória familiar, um ensinamento precioso.

A alegria e a leveza que deveria haver em uma festa foram substituídas por uma correria desenfreada para lugar algum. E o vazio que fica, preenche-se com comida, bebida, com presentes, com brigas na noite de natal. Estranha forma de celebração.

Acendi uma vela e incensos no altar, pedindo aos deuses e deusas que confortem esse outro deus, cuja memória de nascimento, me parece que se perdeu. Feliz natal.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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