Fontes em cartas e versos

A análise fria de um texto, qualquer ele, pode permitir a conclusão de que o seu conteúdo não passa de um aglomerado de palavras monótonas e sem cor.  Ainda que escrito pelo mais talentoso dos poetas, este texto poderá receber a acusação de ser apenas um conjunto de letras aglutinadas num pedaço de papel. Nada mais seria do que um simples texto dentre os bilhões de escritos espalhados pelo mundo, grande parte jogados nas lixeiras da vida ou eternamente enterrados nos porões das memórias humanas.

 

A tarefa de agitar, colorir, poetizar ou fazer falar um texto é tarefa exclusiva do leitor. É o leitor o verdadeiro encarregado de colorir ou tornar especial um texto. É o leitor quem ter o poder de impedir a sua transmutação em poeira, fazendo, via magia interpretativa, com que cumpra a sua sina de encantar o mundo através da revolução das palavras. É o leitor, em síntese, o principal representante do querer do escritor, seu revolucionário parceiro, membros de uma mesma insurreição.

 

É exatamente esta a rebelião comandada por Ana Medina ao impedir que caísse no esquecimento da História a vida que inspirou o poeta brasileiro Hermes Fontes. É Ana a interprete mais fiel da vida de Hermes, aquela encarregada de entender a motivação de sua magistral poesia, refletida nos escritos, desabafos e gemidos do homem que precedeu ao gênio. É o olhar de Ana quem faz reviver a alma do poeta, nos convidando a compartilhar do seu encantamento.  É a sua poesia-cúmplice quem, sabiamente, adverte-nos de que cada carta de Hermes “penetra no coração do poeta e sente-se pulsar a seiva viva do seu bem-querer”. É a sua ousadia quem a faz publicar e comentar, em livro, estas as cartas tão poéticas e doloridas.

 

Não poderia, portanto, existir decisão mais acertada do que a de conhecer o poeta através de seus desabafos mais desesperados, especialmente aqueles que tiveram como destinatários-confidentes familiares e amigos mais íntimos. Aliás, é mesmo no ambiente da informalidade que melhor se conhece o ser humano, até porque, como confessou o próprio Hermes, “a vida se resume nestas cartas fraternais”. O ambiente propício, como revelou Ana, para conhecer o “Hermes bem-sucedido, glória da sua terra, divulgado em tertúlias e saraus literários de norte a sul do país, um pássaro ferido pleno de afeto, pueril, triste e terrivelmente indefeso, ainda que dominando de forma magistral a arte de versejar.”

 

Quem ama a poesia e a obra de Hermes Fontes não poderá deixar de ler, quando do seu lançamento no dia 04 de maio, na sede da Sociedade Semear, o olhar-intérprete de Ana Medina sobre a vida do boquiense que encantou o Brasil com a sua precoce genialidade. Afinal, quem aprende com as experiências alheias, ainda que para não repetir os erros praticados, extrairá das cartas de Hermes Fontes lições imperdíveis. Quem sabe que os gênios não conseguem superar as fragilidades humanas terá nos medos, desamores, desilusões, depressões e desencantos de Hermes Fontes a confirmação de sua tese.

 

A vida pessoal de Hermes Fontes realmente se desnuda em suas cartas pessoais, servindo de pista segura para decifrar a motivação de sua poesia. Lendo o livro que compila as cartas de sua vida se descobrirá que Hermes não conseguiu superar a sua angústia por morar longe da casa e cidade paternas, razão porque se considerava “uma ave sem ninho … porque ninho não tem quem vive em ninho alheio”, pois, como também disse, “meu lar … perdi, sem que o perdesse, porque o deixei”.  Desvendará, como antecipou Medina, os “recalques da infância dificilmente são anistiados na idade adulta”.  Perceberá que Hermes não tolerou o desamor de sua amada Alice, para quem “quis fazer da minha dor um poema e desse poema glorificador um rútilo diadema a aquela que é a razão da minha dor”.  

 

E, finalmente, descobrirá que Hermes se rendeu aos inimigos, quedou-se diante da dor, se deixou levar serenamente, antevendo “a morte que há de vir, vem muito lenta”, encontrando-o com “pressa de chegar ao fim”.  Aliás, um suicídio preanunciado, pois Hermes, como externou aos dezessetes anos, não via neste ato uma fuga ou covardia, mas sim um gesto de grandiosidade, como claramente poetizou: “morreste … descansaste .. és um herói”.

 

Cabe-nos, agora, também lendo o livro, o papel de decifrador de sua obra. Cabe-nos, portanto, revolucionar a sua arte, felizmente com o prévio e colorido auxílio de Ana Medina. Cabe-nos não deixar morrer o poeta que não se foi com a morte do homem. Cabe-nos reafirmar que versos, cartas e prosas são fontes de vida que renascem, diariamente, nos olhares elásticos dos intérpretes.

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