José D’Assunção Barros
As metáforas podem constituir um recurso conceitual importante para diversos campos de saber, notadamente nas Ciências Humanas. Ao nos colocar diante da possibilidade de expressarmos verbalmente as imagens, seja as visuais ou as mentais, as metáforas situam-nos diante de um ambiente multimodal onde palavra e imagem intervêm uma sobre a outra. Ao mesmo tempo, a riqueza dialógica das metáforas vê-se acrescida pelo fato de que elas são capazes de correlacionar pelo menos dois domínios, e projetar um deles no outro. A partir desta instigante propriedade de projetar um domínio de mais fácil apreensibilidade ou de maior impacto em outro, uma boa metáfora pode se tornar um importante recurso de comunicação, para além de suas envolventes propriedades literárias que são sempre bem aproveitadas pelos escritores, poetas e oradores. Por outro lado, e é disso que falaremos neste momento, as metáforas também podem apresentar um importante potencial conceitual – o que ocorre, por exemplo, quando dizemos que “política é guerra”.
Esta metáfora, que será a base de nossa exemplificação, é bem antiga. A formulação da ideia de que “a guerra não é mais do que a continuação da política por outros meios” havia sido feita por Clausewitz (1790-1831) ainda no século XIX (1827). Mas o filósofo Michel Foucault, em sua obra Em Defesa da Sociedade (1975), inverte esta fórmula para afirmar que “a política é a guerra continuada por outros meios”. Estes domínios – a Política e a Guerra – permitem o compartilhamento de certas notas, como já veremos. E também é interessante antecipar que dizer que “Política é Guerra” não é o mesmo que dizer que “Guerra é Política”. Mas veremos isto oportunamente.
Pouca gente tem muitas dúvidas acerca do que se trata, mais concretamente, quando falamos em guerras. Uma guerra envolve uma luta, um embate concreto, inimigos, adversários, aliados, ganhos, perdas, vencedores, perdedores, domínio, sujeição, reordenação, assim como algumas formas de violência, entre as quais a mais imediatamente perceptível é a própria violência física. A guerra se dá através de ações e planejamentos, e envolve táticas e estratégias. O tempo – e também saber lidar com o tempo – é crucial para as guerras, pois as suas ações se dão no interior de um certo espaço-tempo em movimento. O estrategista deve saber lidar com a espera, e também saber interromper esta espera no momento preciso de modo a encetar um ataque surpresa. Além disto, a guerra – que muitos indivíduos vivenciam como atores e espectadores diretos, outros através de seus efeitos (carestias, crises), e outros mesmo através de realizações e representações que as retratam (filmes, livros, notícias de jornal) – produz impactos corpóreos, mesmo à distância (a fome, o medo, a emergência de diversas formas de excitação, e assim por diante). É possível sentir uma guerra, mesmo à distância. Nestes tempos de globalização, podemos senti-la quando ela ocorre no outro lado do planeta.
Quando correlacionamos estes dois domínios – a Guerra (y) e a Política (x) – passamos à possibilidade de enxergar a política de uma certa maneira. Claramente a política e a guerra compartilham as notas ou os aspectos que foram acima elencados. Ambas envolvem espaços de confronto, e realizam-se através de ações e planejamentos, ao mesmo tempo em que estabelecem alianças e oposições. Cada um destes domínios prioriza as suas formas próprias de violência, mas o fato notável é que a violência certamente está presente em ambos. Os dois domínios também pressupõem uma espécie de jogo (e temos aqui uma nova metáfora), o qual deverá produzir ao final de determinados processos (ou batalhas) os seus vencedores e perdedores – sendo possível ainda dizer que, independente de quem sejam estes vencedores ou perdedores em uma avaliação final, possivelmente os processos de confronto envolvidos na política ou na guerra terminarão por produzir ganhos e perdas para ambos os lados. Guerras e processos políticos costumam reproduzir antigas territorialidades ou produzir reterritorializações – físicas e imaginárias – e terminam por desencadear nos seus diversos momentos uma reorganização do espaço (material-objetivo ou sócio-político). De igual maneira, a concomitante ressignificação de figuras humanas em ambos os domínios é recorrente: as guerras e os processos políticos – antes, durante e depois de terem ocorrido – erigem heróis e estigmatizam vilões. Ambos os domínios, passíveis de espetacularização, mostram-se performatizados por atores diante de espectadores.
Poderíamos seguir adiante buscando outros elementos de sintonia entre os conceitos de política e de guerra. Por ora, interessa-nos mostrar como a projeção do domínio mais conhecido – Guerra – e que aqui trataremos como o ‘domínio origem’, possibilita uma interessante apreensão conceitual do domínio menos mediatamente apreensível – a Política – que neste caso consideraremos como o ‘domínio alvo’. De todo modo, é importante se ter ainda em vista que a fórmula “Política é Guerra”, e o seu inverso – “Guerra é Política” – produzem cada quais as suas próprias implicações em um caso ou outro, de modo que a partir deste eloquente exemplo também podemos considerar que as metáforas conceituais realizam diferentes potencialidades conforme redirecionemos o vetor da comparação e definamos um dos dois termos como ‘domínio origem’ ou como ‘domínio alvo’. Dizer que “política é guerra” está longe de ser o mesmo que dizer que “guerra é política”. Seja nas criações metafóricas, seja nas elaborações conceituais, as inversões e redirecionamentos importam efetivamente.
É ainda oportuno se ter em vista que, se quisermos operacionalizar a metáfora “política é guerra” com intenção de favorecer uma discussão de tipo científico, precisaremos submetê-la a algumas questões importantes. Para não ficar apenas no âmbito retórico, mais afeito à vida comum ou às realizações literárias, deveremos começar a investigar a ‘extensão’ possível para esta metáfora. Toda forma de política é guerra? A que casos esta metáfora se aplica com todas as suas notas? De que tipos de guerra falamos quando utilizamos este domínio para ser projetado sobre a política? E a que formas de política, mais específicas, estamos então nos referindo? Que leituras da Política, no sentido mais geral, e das diferentes formas e experiências políticas, em âmbito mais específico, emergiriam se nos aproximássemos delas através de outras metáforas que não a da guerra? Por fim, entre os dois domínios da metáfora “política é guerra”, que notas são efetivamente compartilháveis (e que notas presentes em um e outro destes domínios ficam de fora deste compartilhamento)?
O compartilhamento de notas entre os dois termos presentes em uma metáfora conceitual – um assumindo a função de ‘domínio origem’ (ou ‘domínio fonte’), outro desempenhando o papel de ‘domínio alvo’ – é o segredo do especial vigor que este recurso pode revelar para formulações conceituais, embora seja importante lembrar que existem inúmeras metáforas que, a despeito de seus atributos poéticos ou de sua eficácia cotidiana, não apresentam um potencial conceitual relevante no que concerne aos aspectos específicos que interessam ao seu uso conceitual nas ciências humanas.
O tema das metáforas conceituais – com uma diversidade mais ampla de exemplos e uma exploração maior de seus desdobramentos – foi desenvolvido em um dos capítulos de BARROS, José D’Assunção. O Uso dos Conceitos – uma abordagem interdisciplinar (Petrópolis: Editora Vozes, 2021).
Para saber mais:
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005 [original: 1975].
LAKOFF, G. e JOHNSON, M. Metáforas da Vida Cotidiana (Metaphors We Live By). Chicago: The University of Chicago Press, 1980).