Katty Cristina Lima Sá
Mestre em História Comparada pela UFRJ
Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS)
E-mail: katty@getempo.org
A minissérie Ms. Marvel, lançada em 8 de junho de 2022 no streaming Disney+, chamou atenção por apresentar um perfil de super-heroína distinto: Kamala Khan é uma adolescente permeada por questões comuns à fase em que vive, como amizade, namoro e relacionamento com a família; ela está atenta às redes sociais, mas não apresenta o padrão comportamental e corporal das influencers do Instagram ou do Tik Tok. Antes de tudo, a personagem é uma garota americana, filha de imigrantes paquistaneses, declaradamente muçulmana.
As características étnicas e religiosas de Kamala merecem ressalva pela quebra nos padrões de gênero e raça dos super-heróis – em geral homens e brancos – e pela mudança na visão acerca dos muçulmanos em produções hollywoodianas. Para compreender essa afirmação, precisamos voltar duas décadas. Após os ataques de 11 de setembro de 2001, os temas relacionados às militâncias radicais islâmicas estavam constantemente na mídia e, desde então, os muçulmanos passaram a ser colocados como antagonistas em filmes e séries. No primeiro filme franquia Homem de Ferro (2008), por exemplo, o ferimento que levou Tony Stark a colocar um eletroímã em seu peito é originário da ação de um grupo terrorista islâmico, esse que também sequestrou o herói.
O estereótipo do muçulmano como o outro a ser combatido teve efeitos. Em 2016, uma pesquisa realizada pela Pew Research Center apontou que 49% dos norte-americanos acreditavam que o Islã era uma religião violenta e incondizente com a democracia. Para quebrar tais preconceitos, Ms. Marvel nos mostra personagens muçulmanos que expressam sua fé e cultura em afirmação aos valores de liberdade e igualdade. Em certo episódio, enquanto tenta proteger Kamala da investida de agentes de segurança, o sheikh da mesquita cita uma frase que facilmente parece ter sido dita pelo Profeta Muhammad (571-632), mas cujo autor é o Presidente Abraham Lincoln (1809-1865).
Além de romper estereótipos, a série explora as origens de sua protagonista e, consequentemente, apresenta um episódio importante para a história do sul asiático: a Partição de Índia e Paquistão em 15 de agosto de 1947. Com essa divisão, formou-se um Estado hindu e outro muçulmano, nascidos com populações mistas. As linhas traçadas por britânicos dividiram territórios e segregaram vilarejos, onde vizinhos de religiões distintas, que por séculos conviveram em paz, começaram a matar uns aos outros. A fuga em massa, tanto de muçulmanos da Índia quanto de hindus do Paquistão, é lembrada na série pelo apagamento no passado que ela provocou, pois muitas famílias se dividiram e não conseguiram carregar consigo as fotografias de seus entes queridos. Para tornar-se uma super-heroína e compreender seus próprios poderes, Kamala precisa revisitar esse fato que, para os povos do sul da Ásia, é tão importante quanto Shoah para os Judeus e a Nakba para os palestinos.
Ao final de sua primeira temporada, Ms. Marvel dá sequência ao complexo universo cinematográfico da Marvel (MCU) com grande representatividade. A primeira super-heroína muçulmana teve tanta importância para aqueles que se identificam diretamente com ela, que sua história foi exibida nas telas dos cinemas paquistaneses. Contudo, a inspiração de Kamala Khan perpassa as garotas daquele país, pois ela abre espaço para que personagens de outros gêneros, cores e culturas sejam criados, traz à tona questões como o racismo e a islamofobia, e nos abre para conhecer eventos importantes da história.