Pedro Carvalho Oliveira
Professor colaborador do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá
Integra o Laboratório de Estudos do Tempo Presente (LabTempo-UEM) e o Grupo de Pesquisa Política, Estado e América Latina (GPPEAL-UEM).
A rivalidade com os argentinos foi deixada de lado por milhares de brasileiros na final da Copa do Mundo de 2022 entre Argentina e França, da qual nossos hermanos saíram como tricampeões. O motivo? Lionel Messi, o maior jogador do século, segundo alguns dos principais veículos de imprensa especializados. Vencedor de sete prêmios de melhor jogador do mundo, faltava ao herdeiro da camisa 10 de Maradona um mundial, que quase veio em 2014, mas foi tomado pela Alemanha. Não falta mais. Aos franceses, restou a mesma frustração do “quase” que acometeu os argentinos há oito anos. Restou também a violência racial perpetrada pelos seus compatriotas contra jogadores negros, descendentes de africanos como Aurélien Tchouaméni, que perdeu uma das cobranças da França nos pênaltis.
Anos antes, após a Inglaterra perder a final da Euro Copa para a Itália, também em uma disputa por pênaltis, três jogadores ingleses foram vítimas de racismo nas redes sociais após errarem suas cobranças: Saka, Rashford e Sancho receberam ofensas e ameaças, além de xingamentos racistas e xenofóbicos. Antes mesmo da final no Qatar, torcedores argentinos, em uma reportagem para a televisão, entoaram um canto racista contra jogadores como o francês Mbappé, questionando sua nacionalidade pelo fato de seus pais serem africanos. Inclusive, a França foi criticada por torcedores brancos e jornalistas racistas por não ter um plantel “autenticamente francês”, uma vez que a maioria dos seus jogadores não pareciam franceses – seja lá o que isso for. Apenas três jogadores de todo o elenco foram naturalizados, ao contrário do que diziam os críticos. O restante dos convocados nasceram na França.
O racismo dos torcedores argentinos, citado acima, serviu como argumento para muitos torcedores brasileiros criticarem o apoio dado aos argentinos na final, mesmo quando essa torcida se limitou à admiração por Messi e pela sua impecável participação no mundial. Claro, devemos evidenciar, repudiar e combater o racismo desses indivíduos; mas, se isso pôde se tornar uma justificativa para brasileiros apoiarem a França ao invés da Argentina, trata-se de uma justificativa compreensível, mas problemática: os franceses, que levaram a extrema-direita duas vezes consecutivas ao segundo turno das últimas eleições presidenciais, também apoiaram medidas políticas voltadas à restrição de símbolos e comportamentos vinculados à fé e à cultura islâmica num passado não muito distante. Recentemente, militares escreveram uma carta manifestando o perigo de uma guerra civil caso a França continuasse tolerando a presença de imigrantes árabes no país, fato que provocaria tensões culturais e raciais.
O Brasil, cuja seleção foi eliminada pela Croácia nas quartas de final, é um país estruturalmente racista. A violência racial se expressa das mais diversas formas: seja nas reminiscências sociais do sistema escravocrata, seja no ódio direcionado ao sucesso de pessoas negras ao acessarem espaços de poder. Trata-se de um país cuja população negra é alvo constante tanto de operações das forças do Estado, quanto de outras muitas situações de violência. O fato de termos jogadores negros entre os convocados pelo técnico Tite não diminui o racismo dos brasileiros, que após apoiarem o jogador Vinícius Jr., quando este recebeu o ódio de parte dos europeus pelas danças que fazia para comemorar seus gols no Real Madrid, passaram a esbravejar seu ódio contra as “dancinhas” dos jogadores brasileiros após os gols, depois da eliminação.
O que dizer então dos nossos carrascos, jogadores da Croácia, que comemoraram sua classificação para as semifinais cantando uma música que faz referência a crimes croatas contra sérvios, bósnios, ciganos, judeus e pessoas de outras raças em nome da construção de uma “Croácia grande”, no início dos anos 1990? Na região onde o país do ídolo Luka Modrić se encontra, a constante presença do fantasma da “limpeza étnica” assombra populações cujas origens e singularidades raciais são consideradas, por muitos, raízes de conflitos políticos. Nessa lógica, o diferente, ou “o outro”, é transformado em inimigo por categorias raciais.
O racismo é um problema social. Por isso, não está longe dos estádios, como querem analistas ao afirmarem que política e futebol não se misturam. A torcida é parte de comunidades que expressam suas contradições e seus problemas a todo momento, pois o público não consegue se despir de seus vínculos com o todo social ao entrarem nas arquibancadas. Mais do que buscar a seleção perfeita, aquela cujos torcedores de países racistas não sejam racistas em absoluto (o que não existe), devemos nos perguntar como o grave problema do racismo ainda perdura nas sociedades contemporâneas. Quem e por que se esforça para que isto se perpetue no presente, mesmo que já tenhamos aprendido tanto? O futebol é um lugar no qual podemos perceber a constante presença daquilo que precisamos combater. Por que, então, essa violência persiste?