A revista Leia(quando ainda existia a revista) trouxe um assunto interessante sobre homossexualismo e literatura: as ligações perigosas. Se para Simone de Beauvoir em seu livro “O Segundo Sexo”: “ninguém nasce mulher, torna-se”, substancialmente ninguém nasce homem, torna-se. Ligações perigosas entre “ser ou não ser, eis a questão” em Hamlet de Shakespeare vem mexer com os machões que ainda sustentam a idéia de que lugar de mulher é no fogão, ou ainda, que lugar de gay é levando porrada e sustentando os famosos michês. São faces de uma mesma moeda com caras diferentes, máscaras que sustentam a farsa e alimentam o ego dos que se escondem e pagam tudo para não mostrar a verdadeira face.
A revista Leia desnuda mil faces e Caio Fernando Abreu, conhecido por uma literatura de cunho psicológico, atribui ao homossexual “uma sensibilidade mais aguçada por ter uma ânima mais forte. “Caio Fernando prossegue dizendo “a partir do momento que o homem não tem preocupação com a reprodução da raça está mais voltado para o prazer. O importante é não transformar o tema num problema genital, o que importa é a sexualidade e atrás dela a ânsia antropológica de amar”.
Verdade ou não, a relação existente entre homossexualismo e literatura ainda é tabu nos meios editoriais, junto aos escritores e ao público leitor (?). Mas sabemos que em muitas obras há uma literatura explicita – homossexualizada até demais. Muitos tentam dividir a literatura entre os dois sexos: masculino e feminino. Mas depois de um certo tempo, excitados, talvez pelo “segundo Sexo” de Beauvoir, alguns estudiosos, a exemplo de Roberto Piva, poeta, autor de “Quizumba” pela Global, denuncia: “Quando Henry Muller fala de todas as mulheres do mundo, de todas as trepadas do mundo, está fazendo literatura. Quando Trevisan escreve um livro sobre a estória de dois caras está fazendo literatura homossexual. São dois pesos e duas medidas!. (Leia, nº 136). E continua Roberto Piva “não existe um homossexualismo. Existem homossexualismos. O termo “gay” não passa de uma pasteurização da classe média. E cita, mais adiante, vários escritores definidamente colocados neste tipo de literatura a exemplo de Jean Genet, René Crevel, Passoline, Oscar Wilde, Allen Guinsberg e outros.”
Ao conversar sobre o assunto com outros escritores notei o tabu em admitir se existe ou não uma literatura que se possa chamar de homossexual. Não seria mais uma forma de esteriotipar a questão? Em análise, qual o critério estabelecido para dizer que há uma literatura homo/hetero ou até mesmo bissexual? A verdade é que literatura não tem sexo. A função da literatura está realmente em ser – ser independente de sexo, das divisões, das posições ideológicas.
Mas é inadmissível negarmos que existe toda uma gama de porções homossexuais em obras de autores, hoje conhecidos e reconhecidos no mundo inteiro. Jean Genet, por exemplo, revolucionou nesta área com os inesquecíveis livros “Diário de um Ladrão”, “Nossa Senhora das Flores”, “Querelle” e tantos outros, onde ele despoja-se por inteiro, sem medos, sem conflitos – profundamente exposto aos olhos de todos, fiel a ele mesmo, rompendo com os mais tradicionais valores, ainda hoje impostos pelos pseudos-moralistas que vêm a obra apenas pelo conteúdo temático e se esquecem do valor literário que transcende a quaisquer classificação. Ainda enfocando autores que usaram e abusaram da temática encontramos André Gide em “Os Frutos da Terra”, onde ele canta abertamente o amor à Nathanael. O indefectível poeta português Fernando Pessoa, embora muitos não admitam, é enfático quando diz em seu poema “Soneto Já Antigo”: “Olha, Dayse: quando eu morrer tu hás de/dizer aos meus amigos aí de Londres,/embora sintas, que tu escondes/ a grande dor da minha morte. Irás de /Londres pra Iorque, onde nasceste (dizes…/ que eu nada que tu digas acredito),/ contar àquele pobre rapazito/ que me deu tantas horas tão felizes,/ embora não o saibas que morri…/ mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,/ nada se importará… “Outra expoente nesta temática é a carioca Ana Cristina César, poeta, quando diz em seu livro “A Teus Pés”, mas que na verdade o poema pertence ao livro “Cenas de Abril” com o poema “16 de Junho”: “Posso ouvir minha voz feminina: estou cansada de ser homem. Ângela nega pelos olhos: a woman left lonely.” Ou ainda o poeta chileno Pablo Neruda em o “Caballero Solo” quando o mesmo diz: “Los Jóvenes homossexuales Y lãs muchachas amorosa./ y las largas viudas que sufren el delirante insomnio, Y las jóvenes senoras prenãdas hace treinta horas,/ y los roncos gatos que cruzam mil jardin em tinleblas.” Sem esquecer a acadêmica, primeira mulher a entrar para a Academia Francesa de Letras, Marguerite Yourcenar, em “Memórias de Adriano” quando a mesma diz “Os cínicos e os moralistas concordam em colocar a volúpia do amor entre os prazeres ditos grosseiros… Do moralista tudo se espera, mas espanto-me que o cínico se tenha enganado. Admitamos que uns e outros receiem seus próprios demônios, seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem, esforçando-se por evitar o prazer a fim de lhe tirar o poder quase terrível sob o qual sucumbem, e diminuir o estranho mistério no qual se sentem perdidos”.
É fato que várias obras de cunho literário com uma temática homossexual clara e objetiva, já foram interpretadas no teatro e no cinema, a exemplo de “Querelle”, “O Beijo da Mulher Aranha”., “Maurice” e tantos outros. Mas, a partir do momento em que colocamos em pauta estes autores não queremos dizer necessariamente que pelo fato de escreverem sobre esta temática, significa que o autor seja ou tenha sido homossexual. Esta é uma afirmação que merece um estudo mais aprofundado e consequentemente mais específico.
Yudith Rosembaum diz que “a temática homossexual habita, de forma incontestável, grandes obras da literatura. Para a Recherche, de Proust, por exemplo, Paulo Hecher dá um polêmico diagnóstico: “As paixões heterossexuais do livro, de homem para mulher e vice-versa, não passam de projeções dos casos homossexuais do autor. “E cita ainda Guimarães Rosa em “Grande Sertão:Veredas” cujo amor de Riobaldo por Diadorim (mulher travestida de homem) é, antes de tudo, um caso de desejo homossexual. E vai mais longe quando diz que de Gregório de Matos à Álvares de Azevedo; de João do Rio às transas homossexuais dos “Capitães da Areia” de Jorge Amado, de Olavo Bilac às situações hilárias de pederastia no “Serafim Ponte Grande” de Oswaldo de Andrade, ilustram e focalizam este tema, mas nem todos tiveram em seu tempo a ajuda de um Sartre para elevá-los à categoria de obras dignas, como teve a sorte o alucinado e alucinante Jean Genet, conclui Rosenbaum.
No mais, resta um depoimento fulminante de João Silvério Trevisan, autor das obras “Devassos no Paraíso” e “Vagas Noticias de Melinha Merchiotti”, na qual Trevissan aceita, no limite, a definição de uma literatura voltada para o homossexualismo, já que existem inúmeras maneiras de se falar sobre experiências homossexuais. Mas onde Trevisan fulmina mesmo é quando diz que “Inevitável analisar o papel da critica em meio a toda essa discussão. A critica precisa exorcizar a sua própria homossexualidade ao falar da homossexualidade do outro. Quando o outro funciona como um espelho é terrível: a gente acaba refletindo no espelho para os outros refletirem seu desejo negado. E conclui: “Das pessoas mais perigosas que conheci em minha vida, todos eram, com raras exceções, bichas enrustidas. Elas são perigosíssimas. E arremata: “quem consegue matar o seu desejo está disposto a tudo.”