Inconstitucionalidade da “Escola sem Partido”

Nesse ambiente internacional e nacional de reacionarismo e difusão de ideias retrógadas em que vivemos atualmente, a mais nova polêmica envolve o projeto de lei (PLS 193/2016) apresentado pelo Senador Magno Malta (PR/ES), assumidamente inspirado no movimento “Escola sem Partido”, conforme expresso na sua exposição de motivos:

"O presente projeto de lei foi inspirado na luta do Movimento Escola Sem Partido.
É fato notório que professores e autores de materiais didáticos vêm se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes à determinadas correntes políticas e ideológicas para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis.
Diante dessa realidade – conhecida por experiência direta de todos os que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 anos –, entendemos que é necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir a prática da doutrinação política e ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções."

O projeto pretende incluir nas diretrizes e bases da educação nacional o “Programa Escola sem Partido” (Art. 1°), prevendo que a educação nacional atenderá, dentre outros, aos seguintes princípios: neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado (Art. 2°, inciso I).

Esse projeto – como de resto todo esse movimento “Escola sem Partido” – possui erro grave de concepção e, também por isso, viola gravemente a Constituição da República.

Com efeito, “sem partido” quer dizer sem parte, sem lado, “neutro”. Ocorre que neutralidade não existe. Ninguém é neutro, porque todos carregam concepções de mundo forjadas a partir de suas vivências materiais concretas, experiências, inter-relações, subjetividades, contextos, trocas, relatos, ensinamentos, imposições, sujeições, atividades e afetividades.

Daí ser um despropósito falar em neutralidade política ou ideológica. Essa defesa de uma neutralidade política/ideológica já é uma tomada de posição – consciente ou inconsciente – política/ideológica. Defender neutralidade é tomar partido!

Para além disso, esse projeto é multiplamente inconstitucional, por contrariar a própria essência da educação como direito social fundamental de todos e dever do Estado, da família e da sociedade, bem como os objetivos constitucionais da educação.

É possível deduzir, do texto constitucional, um conceito de educação, a partir de interpretação lógico-sistemática de diversos dos seus dispositivos: processo pluralista de ensino-pesquisa-aprendizagem, de responsabilidade do Estado, da família e da sociedade, tendo como objetivos o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (artigos 205 e 206).

Nesse sentido, a educação é direito social fundamental, instrumento indispensável para a própria formação plena da pessoa.  Sem educação, a personalidade não se mostra plena em seu conteúdo, ficando prejudicado no plano fático da inserção social e comunitária, mas também no plano jurídico [exemplo é o exercício de certas profissões, em que a Constituição autoriza que a lei estabeleça qualificações necessárias a serem preenchidas, como condição de sua possibilidade (art. 5º, inciso XIII)], o gozo de certos direitos subjetivos por aqueles que não têm acesso à educação.

O preparo para o exercício da cidadania é também fator de extrema importância para a integração social.  A cidadania é fundamento da República (artigo 1º, inciso II da Constituição), e diz com a dimensão política do indivíduo – ou seja, o seu poder soberano de decidir os destinos da sociedade politicamente organizada, quer por meio de representantes eleitos, quer diretamente, através de plebiscitos, referendos e projetos de lei de iniciativa popular (art. 1º, parágrafo único, art. 44 e seguintes, art. 14 e art. 61, § 2º), o que é mesmo corolário do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil (art. 1º, caput).

A educação é, portanto, indispensável instrumento de preparo para o exercício da cidadania e, finalmente, a educação tem como objetivo a qualificação para o trabalho, de modo que o trabalho (art. 6º, caput), também um direito fundamental, possa ser plenamente exercido.

Nesse contexto é que se insere o exame dos princípios constitucionais do ensino frontalmente contrariados pelo projeto da “Escola sem Partido”, quais sejam a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (Art. 206, incisos II e III).

Em seu art. 5º, tratando dos direitos fundamentais individuais, a Constituição já inseriu a liberdade geral como um de seus valores básicos (caput), assegurando a sua inviolabilidade, bem como a liberdade de manifestação do pensamento, vedado o anonimato (art. 5º, inciso IV), a liberdade de consciência (art. 5º, inciso VI) e a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX).

Assim, quando a Constituição inclui, dentre os princípios do ensino, a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, está especializando aqueles preceitos mais genéricos sobre a liberdade de expressão, no contexto de um ensino pluralista praticado em um Estado Democrático de Direito.

No que se refere ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, aparecem diferentes noções em torno de um mesmo norte: a diversidade, como necessária decorrência do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput) e do pluralismo político (art. 1º, inciso V), lembrando-se ainda a sua expressa remissão no preâmbulo da Constituição.  É dizer: não cabe ao Estado impor modelos únicos e autoritários de ideias a serem aplicadas (nem interditá-las) no processo ensino aprendizagem, nem tampouco ditar as concepções pedagógicas a nortear o mesmo processo.

Ao contrário, tais ideias e concepções devem ser construídas dialeticamente, no cotidiano das atividades educativas, respeitando-se a autonomia das localidades e das unidades escolares, respeitadas as realidades regionais e diferenças ideológicas, não havendo nenhum modelo pronto, acabado e pré-concebido de ministrar o ensino.

Como manifestação desse pluralismo, a coexistência de instituições públicas e privadas de ensino revela que, não obstante o Estado esteja obrigado a prestar a educação a todos, tal serviço não é seu monopólio, podendo ser prestado por particulares, inclusive aqueles que façam dessa atividade meio de obtenção de lucro, respeitadas, porém, as diretrizes constitucionais e legais, conforme determina o Art. 209 da Constituição (“O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I – cumprimento das normas gerais da educação nacional; II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público”).

Por todos esses motivos, “Escola sem Partido” é escola sem liberdade, é escola sem autonomia, é escola autoritária da imposição de um pensamento único, dogmático, inquestionável, é escola sem democracia, sem cidadania. É a escola das ditaduras.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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