Jornalismo, Diploma e Jurisdição Constitucional – Parte I

Como anunciado aqui, era muito provável que, após dois adiamentos – em decorrência de priorização de outros processos importantes que constavam da pauta – o STF efetuasse na sessão da última quarta-feira (17/06/2009) o julgamento do Recurso Extraordinário n° 511961, no qual se discute se é compatível com a Constituição de 1988 a exigência de diploma de curso superior de jornalismo, oficial ou reconhecido, registrado no Ministério da Educação ou em instituição credenciada, como condição para o exercício da profissão de jornalista (Art. 4°, V do Decreto-Lei n° 972, de 17/10/1969).

 

A decisão já é por todos conhecida, dada a sua enorme repercussão.

 

O tema, tendo em vista a sua destacada importância para uma sociedade democrática, aberta e plural, merece comentários aprofundados, sob os mais diversos ângulos, razão pela qual faremos uma análise em várias partes ao longo das próximas semanas.

 

Nesta primeira parte, publicaremos artigo produzido por meu irmão, Marcos Roberto Gentil Monteiro, professor universitário e mestre em direito constitucional, originalmente publicado no Jornal da Cidade de 08 de janeiro de 2002, na coluna Opinião. O artigo comenta a decisão da juíza de primeira instância, proferida em 2001, contra a qual se interpuseram recursos até que o processo chegou à Suprema Corte. No artigo, com cujas linhas centrais concordo integralmente, Marcos Roberto faz a distinção necessária entre liberdade de expressão e liberdade de exercício de profissão, à luz da Constituição.

 

Faremos ainda, ao longo das próximas semanas, abordagem crítica dos seguintes tópicos: a) os fundamentos constitucionais da decisão do STF; b) a discussão sobre os limites do recurso à razoabilidade e à proporcionalidade como critério de declaração de inconstitucionalidade (ou de, como ocorreu no caso, como critério de declaração de não-recepção pela Constituição de dispositivo legal anterior); c) em que medida a fundamentação adotada pelo STF pode abrir margem para a “desregulamentação” de outras profissões; d) a regulamentação de profissões (ou “desregulamentação”) como assunto que pode e deve ser cotidianamente debatido democraticamente pela sociedade, debate esse que não está interditado pela Constituição; logo, o palco adequado para esse debate não é a jurisdição constitucional, por mais aberta que seja, mas os fóruns de representação legítima e democrática das decisões da sociedade; e) a possibilidade jurídica de que, de algum modo, o diploma de curso superior de jornalismo volte a ser qualificação profissional exigida para o exercício da profissão de jornalista.

 

Segue abaixo, portanto, o anunciado artigo, originalmente publicado no Jornal da Cidade na data de 08 de janeiro de 2002, de autoria de Marcos Roberto Gentil Monteiro:

 

Exercício Profissional do Jornalismo

 

 

Quando uma dentre as inúmeras autoridades responsáveis pela prestação jurisdicional, serviço exclusivamente estatal sob todas as abordagens racionais do problema, decide uma questão jurídica posta sob sua apreciação, utiliza sua prerrogativa constitucional de independência funcional.  Baseado na constatação da falibilidade humana, todavia, o texto constitucional consagra o princípio do duplo grau de jurisdição, conferindo ao prejudicado pela decisão monocrática o direito a um reexame da matéria.

 

Toda a árdua e lenta tentativa de construção histórica da democracia em nosso país encontra-se vilipendiada pela decisão de uma juíza federal que decidiu, ao arrepio da Constituição, pela desnecessidade do grau de bacharel em jornalismo para o exercício deste vital mister.  Ao confundir manifestação de pensamento com exercício profissional, a magistrada não observou a limitação inscrita no inciso XIII do art. 5º da CF/88, à liberdade de exercício profissional, consagrada pela expressão normativa: “desde que atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

 

O Decreto-Lei nº 798/69, recepcionado pela Constituição pátria instituiu a necessidade da conclusão do curso superior em Jornalismo como indispensável à habilitação ao exercício dessa importante função, garantindo-se o “direito adquirido”, de igual modo cláusula pétrea, ao exercício da profissão de jornalista aos que já exerciam a profissão anteriormente à vigência da referida espécie legislativa.

 

Sob o ponto de vista jurídico a necessidade do grau de ensino superior para o exercício da profissão de jornalista em nosso país, nesse espaço-tempo, é evidente.  Contudo, esse não é o principal fundamento para a exigência ao jornalista da habilitação superior específica.  O sistema jurídico é apenas um subsistema da realidade social bem mais ampla.

 

A opinião pública consiste, principalmente após a revolução das telecomunicações com o advento da internet, no mais poderoso instrumento de controle social informal de que a humanidade já teve notícia.  Infelizmente, graças ao que o Professor Doutor Carlos Britto chama de “desestima constitucional”, a imensa maioria da sociedade brasileira, órfã de uma educação de qualidade, orienta sua conduta não pela crença de que o ordenamento jurídico é válido e eficaz, mas sim pelos padrões, valores e normas veiculadas diuturnamente pela mídia.

 

Assim, para citar apenas alguns exemplos, a generalidade da cidadania brasileira seu direito à honra, à imagem, à vida privada, de matriz constitucional, porém encontra-se em contato diário com programas do tipo “Casa dos Artistas”, em que a concessão de um serviço público de telecomunicação, de radiodifusão de sons e imagens, é utilizada não para formar e informar, seu único escopo, mas para alienar e deformar, fazendo com que crianças, jovens e adultos de todas as idades tenham acesso ilimitado ao complexo privado dos protagonistas.

 

A imensa maioria da população brasileira desconhece completamente sua dimensão ética, enquanto ciência que estuda a moral coletiva, todavia esteve em contato durante dias com uma minissérie intitulada “Presença de Anita”, onde os valores de exploração do corpo, da futilidade, e da promiscuidade sexual eram difundidos a inúmeras crianças e jovens, seres em formação que, vítimas do valor de acumulação de capital desta sociedade neoliberal, disseminador da necessidade incessante de aquisição de bens, possuem acesso ilimitado a qualquer tipo de programação, exibida em qualquer horário, já que possuem televisores em seus próprios dormitórios.

 

Pequeníssima faixa de nosso povo conhece o que seja “soberania nacional”, contudo encontra-se em contato constante com manifestações da imprensa falada, escrita e televisada defendendo a nefasta política do entreguismo sob seus mais variados aspectos, de privatizações a emendas constitucionais descaracterizadoras do texto produto da última Assembléia Nacional Constituinte, encomendadas por organismos internacionais, a partir da primeira e mais nefasta delas sob o ângulo econômico, que revogou o artigo 171 do texto originário promulgado em 5 de outubro de 1988, que estabelecia privilegiado tratamento para a “empresa brasileira de capital nacional”, tornando possível um sem número de falências das empresas brasileiras, obrigadas a competir em pé de igualdade com o capital global internacional, agravando em muito a questão social do desemprego.

 

É precisamente o jornalista, com formação universitária específica – única reconhecida por toda a sociedade enquanto capaz de habilitar ao exercício de qualquer profissão, nestes tempos em que a concorrência diante do desemprego está a exigir dos profissionais uma crescente e constante especialização, fornecedora de conhecimentos de ética profissional – responsável pela formação e informação da opinião pública, principal protagonista do processo de construção de uma sociedade democrática no Brasil, desde que coloque à sua disposição uma programação que realize os princípios constitucionalmente estabelecidos no artigo 221: “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.

 

Ora, é através de um processo de educação baseado na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão que se permite à sociedade globalmente considerada a formação de um espírito crítico diante da realidade que a cerca.  Desvalorizar a importância da universidade enquanto instituição hábil à formação de jornalistas comprometidos com sua função social é mais uma das ferramentas de que se vale a classe dominante para, através do poder econômico, manipular a opinião pública no sentido de conformar-se com privilégios elitistas reproduzidos ao longo de um penoso processo histórico para as massas de despossuídos.  Por exemplo, não interessa aos grandes proprietários rurais de nosso país aborde com racionalidade e ética o problema da reforma agrária em nosso território.  Não se informa ao público que uma propriedade rural para atender a sua função social necessita simultaneamente atender aos critérios estabelecidos no artigo 186 da CF/88: “aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio-ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.  O que se tem observado é que a mídia além de não informar, manipula a opinião pública quando noticia que o MST “invadiu” tal ou qual área de terra de propriedade de fulano de tal, negando à cidadania o direito de ser informada de que uma faixa de terra improdutiva não cumpre sua função social e, portanto, presta-se mesmo à reforma agrária, única maneira de dotar tal propriedade, que não pode ser invadida porque desocupada, de função social.

 

Esta é a diametral antítese entre liberdade de manifestação e exercício profissional: neste artigo manifestei livremente meu pensamento, todavia, não possuo a qualificação legalmente exigida para exercer a profissão de jornalista.”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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