A polêmica graça presidencial do Deputado Daniel Silveira

Condenado pelo STF na quarta-feira, 20/04, pelo crime (praticado duas vezes em continuidade delitiva) de “Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados” (Art. 18 da Lei nº 7170/1983, em vigor à época da prática dos fatos), o Deputado Daniel Silveira foi contemplado, no feriado da quinta-feira, 21/04, com o decreto presidencial que lhe concedeu a graça constitucional referente a essa condenação e seus efeitos (Decreto Presidencial de 21 de abril de 2022, publicado em seção extra).

São inúmeras as questões jurídicas que se apresentam, nesse caso, ao exame mais acurado.

O poder do Presidente da República conceder graça é discricionário? Admite-se a sua submissão a controle jurisdicional? Há, no caso, desvio de finalidade do instituto da graça? Existem limites constitucionais para a sua concessão? A graça concedida pode abranger os efeitos secundários da condenação? Pode ser concedida ainda antes do seu trânsito em julgado?

Para a maioria desses questionamentos haverá razoáveis posições controvertidas.

A graça (ou perdão, renúncia do Estado ao direito de punir), espécie de indulto (a graça é o indulto individual, que difere do indulto coletivo porque neste são estabelecidos critérios objetivos e impessoais que beneficiam todos os que neles se enquadrem), é, ao lado da anistia e do indulto, hipótese de extinção da punibilidade, tal como previsto no Art. 107 do Código Penal.

Somente por lei federal pode ser concedida anistia (Art. 22, XVII e Art. 48, VIII da Constituição da República), enquanto a concessão de indulto e graça  é competência privativa do Presidente da República, que pode fazê-lo por meio de decreto (Art. 84, XII) e pode, se quiser, delegar essa atribuição aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União (Art. 84, parágrafo único).

Por ser competência constitucional privativa do Presidente da República, trata-se de poder discricionário e insuscetível de submissão a controle jurisdicional? Não necessariamente, pois atos de competência privativa podem violar preceitos legais ou constitucionais e até mesmo ser praticado sob a roupagem jurídico-formal correta, mas para atender a finalidade diversa da estipulada em norma. Assim, em tese, pode-se apontar no decreto que concedeu graça ao Deputado Daniel Silveira a intenção de afrontar o Poder Judiciário e mais especialmente o Supremo Tribunal Federal, para funcionar como se tratasse de poder revisor das decisões jurisdicionais da Suprema Corte (à guisa do que a Constituição autoritária de 1937 permitia ao Presidente da República) ainda mais quando essa decisão foi tomada um dia antes, ainda não transitou em julgado (sequer teve acórdão publicado) e foi anunciada ao conhecimento público em plena “live” realizada pelo Presidente da República; pode-se apontar, para além do desvio de finalidade que fulminaria de nulidade o decreto, que viola frontalmente princípios constitucionais fundamentais como o da separação e independência entre os poderes e o os princípios da moralidade e impessoalidade administrativa.

Todavia, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar ação direta de inconstitucionalidade proposta em face do “indulto natalino” concedido pelo então Presidente da República Michel Temer (ADI 5874), decidiu que o Poder Judiciário até pode analisar a concessão de indulto (aí valendo tanto o coletivo quando o individual, a graça) quanto à sua constitucionalidade, mas não quanto ao seu mérito, ou seja, quanto ao juízo de conveniência e oportunidade [ainda que tenha condicionado esse poder discricionário à escolha entre situações moralmente admissíveis, o que pode ser uma brecha nesse precedente a amparar a possibilidade de submissão da graça em análise ao controle jurisdicional do próprio STF], e que tal ato não ofende a separação de poderes pois essa competência privativa que é atribuída ao Presidente da República se insere nos mecanismos de freios e contrapesos inerentes à organização dos poderes estatais.

Dentre os limites constitucionais à sua concessão (e, portanto, fora do poder discricionário do Presidente da República) estão os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os definidos em lei como crimes hediondos, que a Constituição considera insuscetíveis de graça e anistia (Art. 5º, XLIII). Ocorre que o Deputado Daniel Silveira não foi condenado por qualquer desses crimes, nem tampouco os crimes pelos quais foi condenado são qualificados em lei como hediondos. Porém, a circunstância de serem crimes contra a ordem democrática (incitação à abolição violenta do Estado Democrático de Direito) faz como que vozes abalizadas defendam o posicionamento de que, tendo em vista que o princípio do Estado Democrático de Direito é fundamento da República e princípio fundamental da Constituição, não se pode admitir a graça (ou perdão) de crimes que ameaçam concretamente a ruptura com o regime democrático, além de a Constituição também prever que tais crimes são inafiançáveis e imprescritíveis. A aceitação dessa tese, todavia, comporta admitir certo ativismo judicial, tanto mais questionável quando praticado para aumentar o poder do Judiciário em anular ato do Poder Executivo.

Questão aparentemente menos controversa é a impossibilidade de a graça poder ser estendida aos efeitos secundários da condenação. Com efeito, a Súmula nº 631 do STJ dispõe que “O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais.”. Assim, a inclusão, no decreto da graça, das penas de multa e das penas restritivas de direitos tem tudo para ser derrubada em juízo, inclusive com manutenção da inelegibilidade decorrente da condenação por órgão judicial colegiado pela prática de crime contra a administração pública (Art. 1º, I, “e”, 1 da LC nº 64/1990, incluído pela LC nº 135/2010). De igual modo, menos controversa é a possibilidade de concessão da graça antes do trânsito em julgado da condenação, pois no mesmo julgamento da ADI 5874, levantada a discussão, prevaleceu o entendimento de não haver impedimento nesse sentido, ainda que ali a discussão tenha se dado em relação a indulto coletivo e não a graça (indulto individual).

Mais importante, contudo, do que o exame desses diversos aspectos jurídicos é a percepção da estratégia da tensão política permanente adotada pelo Governo Federal desde o início do atual mandato.

Com efeito, essa estratégia de duradouro confronto com as instituições, cotidianos discurso e prática antissistema, é politicamente mobilizadora de suas bases, arregimenta apoios e é desviante dos inúmeros e muito mais prioritários problemas a serem enfrentados, como a crise social e econômica desestruturante do atendimento das necessidades mais básicas da sociedade, que lida com alta de preços, baixos salários, desemprego ou trabalhos enormemente precários e informais e vê o aumento da pobreza e miséria, para não mencionar os ainda existentes danos e ameaças à vida e saúde decorrentes da pandemia do coronavírus.

Além disso, são constantes os testes de resistência das instituições aos arroubos autoritários e de ruptura com a democracia.

Tem-se aí mais um teste (com escancarada afronta ao STF, ainda que sob forma jurídica aparentemente regular), dentre tantos efetuados até aqui, da capacidade das instituições de conter um possível autogolpe, em caso de derrota nas eleições de outubro, semelhante ao que foi tentado por Donald Trump nos EUA, com a não aceitação do resultado das eleições e a invasão do Capitólio. E olha que, lá, as instituições democráticas têm muito mais consolidação histórica e capacidade sistêmica de contenção de arroubos e tentativas dessa natureza e ainda assim foi aquele caos.

Estão as instituições brasileiras e a nossa sociedade preparadas, motivadas e mobilizadas para impedir algo semelhante por aqui?

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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