O direito fundamental à oferta da educação básica

A difícil concretização de direitos fundamentais sociais prestacionais encontrou, no caso do direito fundamental à oferta, pelo Poder Público, da educação básica, final satisfatório, em julgamento concluído pelo Supremo Tribunal Federal na quinta-feira passada (22/09/2022).

Quando trata dos direitos sociais (capítulo II do Título II), a Constituição efetua um certo desmembramento quanto aos seus destinatários. Assim é que o artigo 7º enumera direitos sociais dos “trabalhadores urbanos e rurais”, elencando diversos deles como titularizados também pelos “trabalhadores domésticos” (artigo 7º, parágrafo único, na redação dada pela emenda constitucional nº 72/2013), sendo ainda destinados aos servidores públicos titulares de cargos públicos, com restrições (artigo 39, § 3º) e assim também aos militares (artigo 142, § 3º, inciso VIII e artigo 42, § 1º).

Entretanto, no que se refere aos direitos sociais do artigo 6º, na redação dada pela emenda constitucional nº 90/2015 (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados), além do direito de todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social a uma renda básica familiar (art. 6º, parágrafo único, na redação dada pela emenda constitucional nº 114/2021), a Constituição não faz qualquer restrição, não se exigindo, para a titularidade de tais direitos fundamentais, a condição jurídica de trabalhador, podendo o desempregado, por exemplo, exigir do Estado o seu implemento.

Nessa toada, o artigo 205 estabelece que a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade (…)”.

Esse dever do Estado com a prestação da educação a todos, como direito fundamental, deve ser efetivado mediante a garantia de: a) educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; b) progressiva universalização do ensino médio; c) atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; d) educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; e) acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; f) oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; g) atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde (tudo conforme o Art. 208 e seus incisos, com alterações das emendas constitucionais nº 14/1996, 53/2006,59/2009).

Desse modo, seria até desnecessário – não fosse a importância, no Brasil, de sempre se reafirmar o óbvio – a norma do artigo 208, § 1º prever que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”.

De outra parte, se o Estado não cumprir com a sua obrigação de oferecimento do ensino obrigatório (o não cumprimento aí significa tanto a sua não oferta quanto a sua deficiente oferta), a Constituição determina a responsabilização da autoridade competente (artigo 208, § 2º). É dizer: além das eventuais sanções cíveis, criminais e administrativas, o não cumprimento da obrigação estatal com a prestação da educação obrigatória configurará, pela autoridade responsável, a prática de crime de responsabilidade, por atentado contra a Constituição Federal e especialmente contra o exercício dos direitos sociais (Art. 85, inciso III), sendo a educação um direito social fundamental, conforme já mencionado.

Quanto à família (base da sociedade e possuidora de especial proteção do Estado, segundo o artigo 226 da Constituição Federal), o seu dever jurídico de prestar educação se consubstancia em assegurá-la à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade (artigo 227), o mesmo podendo ser dito em relação à sociedade, sendo ainda dos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos menores (artigo 229).

Portanto, tratar normativamente a educação como um direito fundamental predominantemente associado a prestações positivas do Estado, da família e da sociedade, mas sobretudo do primeiro significa também o estabelecimento de uma série de consequências jurídicas, que podem ser resumidas: a) “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (artigo 5º, § 1º da Carta Magna), sendo então justiciáveis os direitos e garantias fundamentais, entendido justiciáveis como passíveis de tutela jurisdicional, em face do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário em caso de lesão ou ameaça a direito (artigo 5º, inciso XXXV); b) o estabelecimento de uma ordem de valores e prioridades enquanto políticas públicas a serem executadas e desenvolvidas pelo Estado para a prestação da educação.

Ocorre que sempre são colocados argumentos relacionados à falta de recursos ou estrutura para o atendimento dessa obrigação constitucional fundamental do Poder Público. Muitas vezes, são argumentos muito genéricos, sem qualquer demonstração pormenorizada da alegada insuficiência de recursos. Em outras situações, nos casos de judicialização individual, argumenta-se com o que seria impossibilidade de o Poder Judiciário interferir no planejamento e execução de política pública, pela Administração Pública (Poder Executivo), que deve ser voltada para o atendimento coletivo de tais direitos.

Pois bem, no caso julgado na quinta passada, o Município de Criciúma(SC) argumentou exatamente nessa linha de não caber ao Poder Judiciário “interferir nas questões orçamentárias da municipalidade, porque não é possível impor aos órgãos públicos obrigações que importem gastos, sem que estejam previstos valores no orçamento para atender à determinação”, ao se insurgir contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina que manteve obrigação judicialmente imposta à administração local de assegurar reserva de vaga em creche para uma criança.

O STF julgou improcedente o recurso, com destaque para a fundamentação da Ministra Rosa Weber, no sentido de que a oferta de creche e pré-escola é imprescindível para assegurar às mães segurança no exercício do direito ao trabalho e à família, em razão da maior vulnerabilidade das trabalhadoras na relação de emprego, devido às dificuldades para a conciliação dos projetos de vida pessoal, familiar e laboral “em razão da histórica divisão assimétrica da tarefa familiar de cuidar de filhos e filhas”, sendo que “esse direito social tem correlação com os da liberdade e da igualdade de gênero, pois proporciona à mulher a possibilidade de ingressar ou retornar ao mercado de trabalho”.

Na sequência, o STF fixou a seguinte “Tese de Repercussão Geral”:

“1 – A educação básica em todas as suas fases, educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens, assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata.

 

2 – A educação infantil compreende creche, de 0 a 3 anos, e a pré-escola, de 4 a 5 anos. Sua oferta pelo poder público pode ser exigida individualmente, como no caso examinado neste processo.

 

3 – O poder público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica.”.

Resta saber em que medida e proporção esse julgamento trará balizas para eventuais novos avanços envolvendo tantos outros direitos fundamentais sociais prestacionais, pois cada qual possui características próprias de atendimento e planejamento/organização/prestação.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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