Moradores de avião

Tenho bastantes amigos e conhecidos que se gabam das milhas voadas e dos pontos acumulados nos cartões de fidelidade criados pelas companhias áreas. Eles sabem os diversos modelos de aviões, os nomes dos comandantes, os trejeitos dos tripulantes e até mesmo os significados dos roncos dos motores. Gostam de dizer que têm mais horas de vôos do que tempo de casa. Resumem as comprovadas bravatas concluindo que são verdadeiros moradores de avião.  Escuto-os, melancólica e pacientemente, mesmo porque acredito que ser morador de avião é portar um status desagradável.

 

Não porque as poltronas de avião são desagradáveis e apertadas, pouco lembrando o conforto que o pomposo nome poderia indicar. Tampouco em razão das refeições servidas, se é que o requentado sanduíche-de-alguma-coisa-recheado-com-outra-coisa pode ser catalogado neste necessário deleite. Muito menos em função dos incontrolados atrasos dos vôos, pontuais apenas na especializada tarefa de desrespeitar os passageiros. Também não em função dos riscos do trajeto, principalmente quando se sabe da irresponsabilidade daqueles que de deveriam controlar a segurança dos vôos.

 

É bem verdade que o tamanho e o conforto de uma moradia não são obstáculos para fazer feliz o seu morador, ainda mais quando possuir um lugar para morar é um artigo de luxo para vários brasileiros. Igualmente, o sabor de uma comida não serve como parâmetro de prazer, até porque tem um pouco de comida é o sonho de consumo para milhões de cidadãos. Tampouco a infelicidade está interligada à pontualidade do brasileiro, ainda mais quando chegar no horário não é um atributo forte para os habitantes das terras tupiniquins. Da mesma forma, o quesito insegurança não é fator preponderante na exclusão do avião como moradia aprazível, pois quem em terra firma bem sabe o que é seqüestro, assaltos, assassinatos e acidentes automobilísticos.

 

Os problemas são outros, pousados em motivos completamente diversos. No avião os rostos são nuvens que se dissipam rapidamente em cada pouso, fazendo passageira até as conversas mais consistentes. No avião as ruas são pequenos pontos no horizonte, inalcançáveis ao olhar que anseia pisar em terra firme. No avião as estrelas são aprisionadas em grossos vidros, intocáveis e estranhamente distantes.  No avião é proibido fazer físico o mais puro dos amores ou mesmo esboçar um carinho mais ousado. No avião não se joga bola de gude, não se vê o pião rodopiar, nem se sabe o que é amarelinha ou mesmo um simples campeonato de bafo. No avião o telefone é mero instrumento de decoração, o bicho de estimação uma fotografia de revista e a cama o mais cobiçado bem de consumo. No avião o mundo não passa de um pequeno e monótono espaço sem cor.

 

Mas morar num avião também é desprezível pelo próprio propósito da chegada ou o motivo da partida. Cada pouso significa um lugar diferente, um solo estranho, uma terra que logo será convertida em despedida. Cada partida um gesto igual, sem saudades fincadas ou lágrimas sentidas. O morador do avião, seguindo o voar de sua moradia, não aceita paradas ou chegadas definitivas. Logo uma nova partida anuncia a próxima chegada. Chegada que se transforma em partida, partida que nunca chega a um aeroporto seguro. Chegar e partir sem saber a ordem correta dos fatores ou resultado do enigma. Chegar e partir engolidos numa só tragada, um transitório gole de sabor vazio, uma ressaca de impossível cura.

 

Eu, confesso, sou um freqüentador assíduo dessa espécie de residência aérea. Porém não faço, não quero e nem pretendo fazer do avião o meu lar. Assumo sempre a minha condição de mero visitante, um passageiro eventual. E mesmo quando o tempo de constância dentro da inusitada residência indique a um terceiro desavisado que faço parte do estressado grupo dos moradores de avião, cuido logo de esclarecer o lamentável equívoco. Torno claro que estou de passagem, que não tenho qualquer relação de permanência com aquelas pessoas que, prazerosamente ou não, fazem do avião um habitat natural. Morador de avião é um status que, sinceramente, não cobiço. 

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