A Espanha, desafiando os medos que mantinham os europeus presos ao pavor religioso medieval, ousou enfrentar os mares e as tempestades, rivalizando com os irmãos portuguesas na tarefa de redesenhar o destino do mundo. Nada parecia abalar a coragem daqueles loucos aventureiros que, jogando às favas o porto seguro de suas vidas, zarpavam sem saber aonde chegariam ou mesmo se algum dia retornariam. Eram tantos os obstáculos içados para desestimular cada viagem, especialmente pelas circunstâncias da época, que ainda hoje se acredita de que tudo não passava de uma ficção cientifica plagiada pelos historiadores de então. Ausências de mapas ou instrumentos confiáveis de navegação; ameaças de que seriam devorados por serpentes e monstros marinhos; a informação científica/religiosa de que o oceano acabaria em um mortal precipício; o escorbuto ou outras doenças que pescariam a vida de seus corpos, dentre outras, não abalava a certeza de que estavam certos quando decidiram partir. A História mostrou-lhes que tinham razão, pois foram os mitos e os medos quem verdadeiramente naufragaram diante das caravelas e naves que desvirginavam os mares bravios. Foram também compensados com o “achamento” do continente americano, fazendo incluir no mapa mundial as férteis e ricas terras até então desconhecidas. O “novo mundo” imediatamente encantou o “velho mundo”, principalmente quando se tornou um compulsório exportador de riquezas, homens e animais exóticos. Infelizmente o encantamento fora logo substituído pela mais deslavada e criminosa exploração, resultando, inclusive, no genocídio de milhões de índios e culturas seculares. Astecas, maias, incas, tupis, guaranis, tapuias, sioux, apaches e comanches são algumas das vítimas da cultura destrutiva dos conquistadores europeus, resquício do tempo em que aprenderam que a vida é apenas um detalhe na equação política. Por uma dessas ironias do destino, a ousadia dos marinheiros também ancorou na terra subjugada e, atrevidamente, cuidou de ser transmitida, miscigenada e reproduzida nas gerações que nasciam no novo continente. Revoluções, revoltas, gritos de independência e liberdade não tardaram a abalar o porto seguro do conquistador europeu, consolidando a presença das novas nações no redesenhado mapa mundial. Simon Bolívar, José Martí, San Martin, Boyer, Tiradentes, Frei Caneca, Bonifácio, Hidalgo, Morelos, George Washington e Jefferson foram alguns dos destemidos navegantes do arrojo rebelde. Parecia, a partir de então, que a Espanha havia voltado a viver acomodada no seu seguro porto europeu, não mais seguindo o exemplo heróico de seus velhos marinheiros. Mais ainda, demonstrava que saíra da condição de nação dominante para ocupar o posto de país dominado, ironicamente pela “ex-terra achada” batizada como Estados Unidos da América. Era como se expiasse pelos pecados cometidos no solo americano ou, quem sabe, apenas para confirmar a regra que diz ser o destino da criatura superar o seu criador. Entretanto, como não se adormece eternamente o coração do homem que provou do sabor da ousadia, bastou que o mundo medieval ressurgisse diante do seu olhar, para que o espírito navegante do espanhol despertasse. Mesmo vitimada pela ação do terrorismo fundamentalista de Osama Ben Laden, a Espanha reagiu rápida e corajosamente, mostrando aos seus agressores e ao mundo que navegar de novo era mais do que preciso. Assim como as serpentes e monstros marinhos do passado, as bombas e as propostas políticas medievais de hoje teriam que ser enfrentadas, mesmo aquelas tidas como aliadas, pois somente assim um outro mundo poderia ser achado. E os novos marinheiros espanhóis não perderam tempo, já iniciaram a nova jornada ousando desafiar, como fizera no passado, o mais terrível e poderoso obstáculo já criado pela mente feudal. Partiram dizendo que não mais aceitam a infalível verdade medieval imposta pelo Imperador Estadunidense George Bush, o autoproclamado “Senhor da Guerra”. Comandado pelo capitão Zapatero, nome que lembra o famoso marinheiro mexicano Zapata, os modernos navegantes espanhóis acabam de anunciar que embarcarão na frota que já navega, altiva e destemidamente, pelas águas de um oceano plural, democrático, sem dono ou idéias preconcebidas. Não se sabe quando e em quais portos atracarão estas ousadas embarcações, tampouco se resistirão às tempestades e torpedos que surgirão durante a longa travessia. Mas os bons navegantes sabem que somente chegam os que ousam partir, assim como apenas vivem os que se atreveram a nascer, pois sonhar só vale a pena quando se ousa acordar. Os espanhóis, hoje na mesma nau que conduz milhões de marinheiros pelo mundo afora, voltaram a saborear a velha lição do poeta português Fernando Pessoa, afinal, “navegar é preciso”. * Cezar Britto é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear. cezarbritto@infonet.com.br