Teixeirinha ? É algum remédio para calo?
—- Não conhece o Teixeirinha? – os amigos ficavam abismados.
—- Não tenho calo – defendia-se.
—- Não é remédio para calo. Foi um dos maiores cantores do Brasil.
—- Cantor?
Sempre foi assim. O Gusmão era o entendido da turma, que o chamava de erudito. E ele gostava. De simples Gusmão dos Santos, passar a ser chamado de Gusmão, the erudito era motivo para ficar orgulhoso.
Gostava muito de música e vivia assobiando, sempre uns sons diferentes de todos os gostos da turma.
—- É a última do Dominguinhos? – perguntava um amigo.
Ofendia-se.
—- Beethoven, meu caro. Isso é a sinfonia nº. 6 do Beethoven.
Em outra ocasião.
—- Chopin, meu amigo. Polonaise nº. 1.
E por aí ia. De literatura ao teatro, de cinema à música, o Gusmão era o fino. Só gostava mesmo, como ele próprio dizia, de coisa boa, nada de popular, de povo. Nunca tinha lido – gabava-se – um Tio Patinhas, um Zé Carioca. Dostoievski era o seu travesseiro. Essa mania acabou dando nome ao seu filho: Karamazov dos Santos. Por qualquer motivo citava Tolstoi e Balzac. Voltaire, Russel, Descartes e Platão viviam constantemente em sua inseparável bolsa, que carregava feito um colegial.
Dizia que, antes de completar 18 anos já havia devorado as obras de Karl Marx, Engels, Max Weber e Durkheim. Machado de Assis lera – todos os livros – aos 12 anos de idade e sabia de cor as poesias de Fernando Pessoa.
Realmente, chamar o Gusmão de erudito era o mínimo para se fazer justiça ao seu impressionante acervo cultural. Mas nem tudo na vida é perfeito. O Gusmão tinha um amigo, o Ubaldino, que era o seu contrário. Ler, ou melhor, ver , só revista de mulher nua. O último, e único, livro que leu em toda a sua vida foi A Briga de João Facão com Zeca Matador, um livro de cordel.
Com tanta diferença, era de se esperar que não fossem unidos. Puro engano. Os dois só andavam juntos, mas o Gusmão ditava as normas de comportamento do amigo ignorante, de acordo com o lugar que iam.
—- Se alguém perguntar o que você está lendo, diga que acabou ontem Crime e Castigo, de Dostoievski, e está começando a ler As Ilusões Perdidas.
— Mozart. Diga que acabou de comprar a coleção completa das obras de Mozart.
E assim os dois iam conseguindo levar o barco. Às vezes, o Ubaldino dava uma mancada, mas Gusmão consertava a tragédia a tempo. Não admitia, de jeito nenhum, que o amigo cometesse gafes ou pagasse micos.
Apesar de morar em um bairro pobre, Gusmão, por andar muito em eventos culturais, conseguira umas amizades finas – como a turma tachava – e fazia o possível e o impossível para mantê-las.
Pois bem, um dia uma dessas amizades o convidou para um coquetel, por ocasião da exposição de Anatole Borrachan, um famoso artista plástico francês. Foi o máximo. O Gusmão exultou. Era o que faltava para ele ser aceito no jet set nacional. O internacional, pensava, viria mais tarde. Com esforço, tenacidade e cultura chegaria lá. Mas tinha um pequeno problema: não gostava de andar sozinho, principalmente em festas.Pensou, pensou e só encontrou uma saída; levar Ubaldino, mesmo sabendo dos riscos que corria. E passou uma semana orientando o amigo.
—- Não, não é assim! Você tem que andar mais descontraído.
—- Não, não precisa segurar a taça com força.
— Está rindo muito largo e aberto. O riso, na alta sociedade, tem que ser com a metade da boca, feito o rô, rô, rô de Papai Noel.
— Está errado. O salgadinho tem que ser pego com os dedos polegar e indicador. Assim, assim. Não! Não limpe os dedos na calça!
Não tinha jeito. Mesmo tendo ensinado tudo que aprendera no livro “ Como entrar e sair de um coquetel”, de Brigitte Turlon, figura das mais famosas da alta roda parisiense, Gusmão não conseguiu deixar Ubaldino em forma. Dava pra quebrar o galho, mas o risco era grande.
O coquetel tinha tudo que se encontra normalmente em coquetel fino. Rodas de senhoras e cavalheiros rindo a meio-pau, feito bandeira nacional em dia de luto oficial, rodando nas mãos taças e cigarros. Garçons impecáveis deslizavam pelo salão, enquanto três pianistas se revezavam, enchendo o ambiente com Vivaldi, Stravinsky etc.
Os dois já tinham traçado alguns salgadinhos, canapés e taças de champanhe, mas não tinham tido oportunidade de conversar com o comendador Porfiro Libratter, o anfitrião e objetivo do Gusmão. Impressionando bem o comendador, ele poderia ser convidado para outros coquetéis, outros eventos sociais, e logo estaria fazendo parte da alta roda.
A oportunidade enfim chegou. O comendador dirigiu-se aos dois, no momento que um pianista passeava pelo concerto de Brandenburgo nº 2.
— É agora. Comporte-se bem!
—- Xá comigo.
—- Oh, oh, oh, estão gostando da exposição?
—- Maravilhooosa – derreteu-se Gusmão.
E com o coração aos pulos, apresentou o amigo.
— Comendador, este é o Ubaldino, um grande amigo, que, igual a mim, gosta muito de eventos culturais.
Neste momento um garçom ofereceu canapés. E o comendador, virando-se para Ubaldino.
—- O senhor gosta de Bach?
—- Gosto, mas não vou aceitar porque já comi muitos hoje.