Nos últimos dias ando pensando numa frase de Sartre que diz muito sobre o mundo hoje: “o inferno são os outros”. É forte, eu sei, mas, real. Enquanto avaliamos e apontamos dedos na direção alheia, temos que cobrir as reações dos dedos apontados também para nós. É possível, sempre que os olhos abrem, notarmos que o outro também carrega em si parte do que somos. Alguns preferem notar o inferno alheio, outros preferem os exemplos.
Dias antes do Carnaval, conversando com uma amiga super-cabeça-aberta, que me contou de uma situação desagradável entre ela e um amigo, eu não me surpreendi. Já espero o inferno dos outros. Numa festa tranquila, só com pessoas conhecidas, ela, inclusive acompanhada do namorado, estava curtindo a noite, entre uma bebinha e outra, uma dancinha e outra, um cigarrinho e outro, muitos risos e um bom papo rolando entre os presentes. Mais pro meio da reuniãozinha, ela foi para até a cozinha pegar algo pra comer e ao passar por um conhecido, de longa data, ouviu quando ele soltou um: “com esse vestidinho, eu dava uns pegas em você”. Ela me contou que escutou o infeliz comentário, mas na alegria da noite nem assimilou, levando a coisa na brincadeira de quem tinha bebida um pouco (ele no caso).
Minutos depois, não muito tarde do tal comentário infeliz, ela foi ao banheiro. Fez o xixi básico de quem tomou algumas cervejinhas e ao sair, no corredor, deu de cara com o mesmo conhecido. Fazendo uma barreira com o braço, ele impediu ela de passar e tentou beijá-la sem consentimento. Ela foi mais ativa e mandou-o soltá-la. Ele mais uma vez sugeriu que ela estava demonstrando querer ser agarrada naquela noite. Ele deduziu isto só porque ela estava de vestido (ela me disse que este foi o argumento dito pelo cidadão). Constrangida, minha amiga ainda avisou com o dedo na cara dele, que nunca mais falasse ou chegasse perto dela mediante denunciá-lo pra polícia. Claro que a noite não teve o mesmo brilho de horas atrás. Ela e o namorado foram embora. Ela em silêncio. Chocada!
Dias depois, enquanto conversávamos, ela ainda triste com a situação, se mostrou também raivosa consigo mesma. Queria saber de mim se deveria ter falado para o namorado e provocado uma confusão na festa, com probabilidade do infeliz assediador ter a cara quebrada ou se seria melhor ligar pro tal cidadão e dizer mais uma vez que ele era um babaca, assediador e que iria falar pra todos os amigos deles em comum, o tipo de escroto que ele é. Eu, que não curto muito violência, disse que ela deveria ter dito ao namorado sim (independente de dar ou não briga), mas, como isto não tinha acontecido no dia x, que ela não ligasse agora para o assediador mais pra nada, mas que sim, falasse desse caso para todos os amigos em comum, porque ele só irá parar de ser assim (escrotinho) quando as pessoas descobrirem seu real ser.
A raiva dela é que por ser uma adulta, esclarecida, classe média-alta, senhora de si, ela se calou na hora em que deveria ter falado, gritado pra todos ouvirem. Como o inferno são os outros (e essa frase serve para diversos aspectos de nossas vidas), nunca estaremos preparados para esse tipo de sacanagem. O nosso problema é achar que no meio de nosso convívio social, com tantas manifestações prol feminismo, não existam pessoas que ultrapassem limites para com o outro. Com bebida ou não, uma hora o lado babaca salta. O problema da classe média é achar que nada ocorrerá com ela, que está imune às doenças sociais, mas não é real. Enquanto classe média (e alta) aprendemos também que calar reduz danos. Mas será verdade isso? O assédio muitas vezes vem das relações mais próximas e talvez isto seja o mais surpreendente. Minha amiga, até hoje chocada, começou a notar a presença machista que ronda as mulheres rotineiramente a partir de babacas esclarecidos, ditos feministas também.
No Carnaval de Olinda tive a chance de conhecer duas garotas fantásticas, que viajaram pela primeira vez juntas para um local distante sem os pais e sim, logo foram para o Carnaval de Olinda. Seguindo a onda surpreendente de mulheres que não se sentiram menores e falaram para os assediadores (de Carnaval) que eles não tinham direitos sobre seus corpos, essas duas garotas deram um show de feminismo. Mesmo sem perceberem isto (foram donas de si).
Lembro que numa ladeira daquelas, na bagunça da festa, um cara tentou beijar uma delas e ao desviar do beijo, a garota olhou na cara do cidadão e falou: “não quero e não encoste em mim”. Claro que ela teve sorte dele obedecer o aviso – percebi que em Olinda, a maioria dos caras foram respeitadores. O que não foi igual em tantas outras ocasiões Brasil afora. Vi matérias de garotas agredidas durante a festa. Lembrando que não foram casos dentro de comunidades humildes, onde mulheres sofrem com necessidades básicas e não possuem força para gritar pelos seus direitos. Os relatos partiram de festas, com pessoas ditas esclarecidas, mas que sim são abusadores também. São infernos e babacas.
A linha que divida o abusador (físico ou psicológico) do resto das outras pessoas é fininha, e cabe aos mais afoitos, dispostos ao ato, se controlarem e perceberem que seus direitos acabam quando começam os direitos dos outros. É um treinamento que precisa ser feito diariamente, como tudo que foi impregnado na cabeça de todos nós, culturalmente de forma errada. Percebi que perceber-se inferno também já é um começo pra mudar o que não é legal em nós.
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