O beijo

Escrever sobre beijo nesta semana é correr o risco de bitocar no molhado. Todos irão dizer que o beijo mais marcante foi aquele “quase” dado por Júnior (Bruno Gagliasso) em Zeca (Erom Cordeiro). Mesmo porque não seria um beijinho discreto, daqueles roubados velozmente da pessoa cobiçada, sequer lhe permitindo esboçar reação. Mais que isso, seria um inédito e consentido “beijo de boca” entre duas pessoas do mesmo sexo. Um beijo exibido em horário nobre, mais precisamente na global novela América. Um beijo que levaria a marca do batom da consagrada escritora Gloria Perez.

É bem verdade que o murmúrio generalizado não foi provocado pela perspectiva do ato de beijar, ainda mais quando se sabe que estava sendo ensaiado por dois personagens fictícios, cuidadosamente anunciado em doses calculadamente homeopáticas. A novidade estaria apenas no fato de que uma televisão aberta se quedaria à realidade, demonstrando que o amor entre pessoas do mesmo sexo não podia continuar sendo rotulado como imoral, doentio ou outra agressão semelhante. O ineditismo estaria  no fato de que o beijo se deu diante do olhar do público noveleiro.

O que efetivamente se discutia naquele beijo-não-dado é o ainda reinante preconceito social e religioso contra os gays, lésbicas, bissexuais e simpatizantes, agora ratificado pela falta de ousadia da conservadora Rede Globo. O beijo simbolizava  apenas a ponta do iceberg de uma questão que precisa ser urgentemente resolvida pelo Brasil, que não pode mais excluir parte considerável de sua população, jogando-a nas garras de moralistas e fundamentalistas que acreditam viver no milênio passado. O mundo moderno não mais admite a manutenção de preconceitos arcaicos, a adoção de valores defendidos pela carcomida Santa Inquisição, a exemplo da ausência de uma legislação que assegure a união civil entre pessoas do mesmo sexo.

Mas o beijo a que se refere o título não foi aquele discutido  publicamente na novela das oito e comentado nos mais diversos meios de comunicação. O beijo que tem se destacado é de outra espécie, sem qualquer compromisso com a quebra de preconceitos ou com o fortalecimento da humanidade. Ao contrário, é um beijo dissimulado, envergonhado, destrutivo e com forte conteúdo de traição para com a pessoa tida como destinatária. E antes que se narre a razão do mencionada “desavença amorosa”, necessário se faz conhecer os amantes desta pública história.

Pois bem! Como se sabe, a Cidadania (personagem principal) levou séculos para fazer da Liberdade de Imprensa (segunda heroína) uma de suas paixões mais destacadas, fundamental para a manutenção do seu eterno vínculo amoroso com o Estado Democrático de Direito (estágio final do namoro das duas). Na construção histórica deste amor, acertadamente não se permitiram flertar com a Censura (um das vilãs) ou outro elemento inibidor do livre-pensar. Não sem razão os Cidadãos (irmãos da mocinha) espalhados pelo mundo buscaram escrever em suas respectivas Constituições a declaração amorosa de que a Liberdade de Expressão (irmã-sócia da personagem) é uma deusa poderosa, não podendo se punir a imprensa e seus agentes quando se deixam catequizar. Nesta mesma balada sentimental, os jornalistas e radialistas (filhos adotivos das personagens) sempre buscaram retribuir o amor familiar, repelindo os favores ou as determinações dos autoritários de plantão (gang vilã).

É exatamente aí que entra o Beijo tema principal deste artigo, diariamente distribuídos pelos Sensacionalistas, parentes ingratos da Liberdade de Imprensa.  Eles usam seus falsos beijos quando fazem da Cidadania um mero joguete de suas ambições políticas ou conquistas de audiências. Espalham seus disfarçados carinhos quando amedrontam os Cidadãos, transformando-os em futuras vítimas dos noticiários jocosos que os alimentam. E têm como método de ação pisotear conquistas efetuadas pela própria Cidadania, como o “direito de defesa”, a “presunção de inocência” e o “direito à privacidade”, taxando-a sumariamente de culpada, dando validade a depoimento de criminosos ou lendo, sem qualquer permissão, cartas íntimas e pessoais.

A Cidadania e a Liberdade de Imprensa não merecem ser tratadas e ameaçadas com desprezo. Não podem ser vitimas indefesas do fuxico, da ambição ou da inconsciência social. Todos, inclusive os Sensacionalistas, precisam refletir sobre este desserviço que se espalha diariamente nos meios de comunicação. Afinal, não se pode transformar um beijo amoroso, capaz de quebrar tabus e fazer avançar as conquistas da humanidade, em algo desprezível. O “Beijo de Judas” não merece ser repetido e destacado novamente em nossa História.

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