O circo chegou

Uma das melhores lembranças que guardo é de descobrir o circo chegando. De repente, um dia qualquer da semana, se vislumbrava no ao redor da cidade uma trupe meio maltrapilha, meio mágica chegar mansamente com carros velhos carregados de cacarecos. Peças de metal e madeira iam-se encaixando no levantar da poeira e o terreiro ia sendo ocupado por uma construção mambembe e redonda. A lona furada arrematava o trabalho, escondia o picadeiro e deixava entrever as estrelas nas noites sem lua.

A cidade era então envolta naquela aura que misturava alegria e cheiro de pipoca. Os artistas saíam pela cidade a anunciar as sessões, iam atrás do carro de som, dançando, fazendo malabares, encantando. Lembro de ir às sessões da matinê, sentar na arquibancada e comer algodão doce. Tomar o susto de perceber que o bilheteiro era o apresentador do circo e que a vendedora de doces era a rumbeira. Havia o tratador de animais equilibistra e o palhaço vendedor de pipoca. Ninguém era uma coisa só naqueles pequenos circos, o que, por si só, já era algo mágico. Podia, pois, a vendedora de doces, num passe de mágica, transformar-se na rumbeira.

Sempre tive um especial fascínio pelos palhaços e pelos mágicos. Principalmente os que fazia suas apresentações sem falar. Sem as palavras, havia mais espaço para minha imaginação e para minha fé na magia. A magia não só dos truques de aparecer e desaparecer, mas também a magia do riso arrancado pelos trejeitos. Creio que há também algo de trágico no silêncio mágico que arranca “oo” de espanto ou gargalhadas de encanto.

Dia desses, recebi o convite: palhaça Carmela, em Areia Branca. Vamos, você vai gostar. Claro que eu ia gostar: era palhaça e era num povoado. Meu coração já falhou uma batida logo de entrada: a igrejinha branca de portas e janelas azuis, uma gambiarra de luzes amarelas para iluminar o terreiro, as crianças correndo e gritando, um cheiro de pipoca e a kombi estacionada fazendo picadeiro. Senti entrando numa máquina do tempo, direto pra uma lembrança antiga.

Não havia lona, mas havia a magia toda do mambembe à porta do carro colorido, aquele amontoado de gente na expectativa do riso, do coração aliviado, da magia sutil. Uma palhaça de nariz vermelho, brotada direto do sonho infantil, palavras míninas e riso leve. A graça da vida simples, a graça sem idade, arrancando a gargalhada de crianças e avós.   A alegria que não cobra entrada, que senta no chão ou fica em pé, o riso dos detalhes cuidadosos, dos elementos mais cotidianos e risíveis da vida de todos nós. O suor e o riso. E o silêncio. O excesso de palavras mata a magia. O silêncio permite a vida circular mais tranquila, sem sobressaltos.

Ao final, bolhas de sabão invadiram o picadeiro improvisado, tomaram o ar úmido da noite, provocaram gritos de alegria e um abrir de boca encantado, como se as bolhas de sabão fossem as coisas mais absurdas e impossíveis. É que o mágico mesmo está nas pequenas coisas que já perdemos.

Carmela e seu nariz vermelho me fez lembrar de um outro palhaço, que já não sei o nome. Atravessei metade do país para vê-lo se apresentar, certa feita. Fui com meu irmão, que sempre foi meu companheiro de picadeiros. O que me fez ir tão longe para ver aquele senhor russo de raros cabelos brancos que não falava uma sequer palavra em português foi exatamente o silêncio de sua estrangeirice e a tristeza em seus olhos. Um palhaço triste.

Seu espetáculo foi cheio de magia e uma alegria triste. Bolhas de sabão enchendo o imenso espaço em que ele se apresentava – que em nada se parecia com os picadeiros de minha infância, diga-se de passagem – e bolas enormes cheias de ar perambularam por entre a plateia. Todos eram crianças brincando de ser feliz por algumas horas. Mas havia em seus olhos a tristeza de um adeus. Era um palhaço triste, chorava. E seu choro arrancava risos, sua despedida era engraçada para a assistência. Marcou-me profundamente aquele par de olhos. Lembro de termos, eu e meu irmão, saído mudos do espetáculo. A magia prescinde de palavras.

O que, no meu processo associativo aleatório, me fez encontrar na palhaça Carmela algo que lembrasse o palhaço russo sem nome, obviamente, não foi a simplicidade de seu (dela) espetáculo, nem a alegria leve de Carmela. Foi provavelmente a magia silenciosa dos dois, a imensa leveza do riso estourando como bolhas de sabão.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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