O Gatsby que somos um pouco.

Alguém já disse que não é importante ler muitos livros. É preciso desprezá-los em maioria, sobretudo à farta publicação em deficiência de qualidade. Essencial é sempre reler alguns, que de uma maneira lúcida nos conduzem ao deleite e à instrução.

 

O Grande Gatsby (The Great Gatsby, 1925) de F. Scott Fitzgerald (1896-1940) traz consigo o divertimento num enredo sofisticado, hoje historicamente sepultado, em renovado trágico dos encontros equivocados, dos desejos feridos e atormentados, presença rotineiramente ressurgida na miséria humana em seus jogos de perdas e ganhos.

 

Um gande romance de Scott Fitzgerald. Melhor que o filme com Robert Redford e Mia Farrow.

O Grande Gatsby trata do conflito entre o ser e o ter, aliado à indiferença dos dramas individuais sofridos, ausência de solidariedade de parceiros, com preocupação exclusiva na fruição do riso e da sobrevivência, sem compromissos, amarras ou arrependimentos, numa época turbulenta, dourada, criativa e nostálgica sucedânea da Belle Époque.

 

Dir-se-á que é um conflito de personagens ricos, saudáveis, formosos e bem nutridos. Uma trama sem o caráter altruísta que somente a pobreza, a dor e a necessidade dignificam e até santificam o viver. E os personagens de Fitzgerald não são santos nem abençoam sua ambiência.

 

A história de Gatsby, por exemplo, é contada por Nick Carraway, um seu vizinho de descendência ducal, cujo antepassado emigrara para a América, se escusara de lutar nas tropas de Abraham Lincoln, enveredando no negócio de ferragem.

 

Com vocação de escritor e jornalista apreciador do cotidiano, Nick, um comerciante de títulos, é o narrador da trama por ele testemunhada enquanto amigo e parente dos personagens envolvidos e dado ao seu caráter de ser fiel depositário de confidências e segredos, uma fama que não lhe fora bem aceita em New Haven, enquanto estudante, porque “politicamente correto”, um termo ainda não inventado, nem louvado, era excessivamente sigiloso, isento e cauteloso, incapaz de desagradar, assumindo riscos de opinião.

 

Opiniões à parte, Nick pertencia como Gatsby àquela geração de jovens que lutara no solo europeu combatendo na Grande Guerra, o que ele definia como a “retardada migração teutônica, contra-incursão que o deixara irrequieto.”

 

Na temática do romance, o cenário introduzido expõe uma ilha próxima da cidade de New York, cujo formato exibe um Ovo Oriental (EST EGG) com edificações suntuosas, refinadas e excêntricas, e um Ovo Ocidental (WEST EGG) com casas mais humildes, separados pelo imenso pátio líquido do Estreito de Long Island.

 

No Ovo Oriental mora Daisy e seu esposo Tom Buchanans, ambos conhecidos de Nick. Daisy por ser sua parenta em segundo grau e o marido porque fora um seu colega rico desde e tempo da faculdade em New Haven, onde se destacara como jogador de rugby. Daisy é traída por Tom que nutre um romance pecaminoso com uma jovem humilde chamada Myrtle, esposa de George Wilson, um mecânico bronco, proprietário de um posto de gasolina que lhe abastece o carro e conserta os seus enguiços, rotineiramente utilizados nas marcações dos encontros furtivos.

 

Por outro lado Daisy não reclama do marido, afinal lhe agrada a vida despreocupada de esposa rica, em confortos e sorrisos.

 

Já no Ovo Ocidental Nick conhece o seu vizinho misterioso Jack Gatsby, homem extremamente simpático e gentil que recebe em festas magníficas, vasta sociedade nova-iorquina que freqüenta a sua mansão feericamente iluminada.

 

Nick que recebera do pai um conselho jamais esquecido: “não criticar as pessoas, afinal criatura alguma nesse mundo tivera as vantagens que desfrutara”, entendia que “certo senso de decência fundamental é concedido ao homem, desigualmente, ao nascer”. E por isso intrigara-se com Gatsby, anfitrião de tantos convivas, que dele nada sabiam, mas comentavam um seu folclore particular de envolvimentos escusos, acusação de assassinato, tráfico de bebidas, mexericos remoídos em surdina por seus convidados, estimulados por farta variedade de vapores alcoólicos.

 

Temas que ensejavam o mistério e a atração, sem falar que o dinheiro nunca exibirá mau cheiro, a ponto de repelir pessoas.

 

E Nick que “acreditava poder ver bem a vida observando-a de uma janela” ficou entusiasmado ao constatar que Gatsby, embora tivesse origem embasada em “rocha sólida ou pântano alagadiço”, exibia um senso de decência que o tornava superior aos demais, traduzido por “um temperamento criador,… algo de magnífico, uma apurada sensibilidade para as promessas da vida.”

 

Porque a vida não fora fácil para Gatsby. Tivera uma origem humilde, nascido James Gatz, lutando e trocando de nome para conquistar espaços e realizar sonhos, um dos quais sua razão da ostentação em festas e comemorações. Um resquício consigo próprio, como James Gatz insepulto. Desejava rever e reaver o passado na mulher amada, de quem se afastara por ser pobre, acabando o namoro para combater na Europa, enveredar por uma série de ações, algumas improváveis outras especuláveis, como aluno de Oxford inclusive, e sua adoção por um milionário benfeitor, jamais visto ou conhecido.

 

O fato é que Gatsby depois enriquecera bastante, e seus contatos eram cobertos de sigilos e envoltos em mistério. E é Nick quem começa a deslindar todo o novelo, descobrindo nele o pobretão James Gatz, o namorado inesquecível de Daisy, a esposa do lascivo Tom Buchanans, indivíduo arrogante, cuja aparência parecia estar “sempre pronta a agredir”.

 

Mas, as festas do Ovo Ocidental dadas pelo gentleman Gatsby eram uma forma de torná-lo visível a sua amada Daisy, vivendo no Ovo Oriental, o lado sofisticado da baia.

 

Desnecessário dizer que tantos desencontros suscitariam o trágico: Gatsby amava Daisy, que o amara um tempo e não o esquecera, mas que casara com Tom que a enganava com Myrtle, a esposa do mecânico George Wilson, dela tão apaixonado, quanto das graxas e mancais de sua oficina. E assim eis mais uma traição, em amor proibido e perigoso.

 

Gatsby queria Daisy enquanto esta odiava o marido Tom, mas tergiversava em abandoná-lo e aos seus confortos. Tom que não queria perder Daisy como esposa nem largar a amante Myrtle. E Myrtle, que empolgada com o ricaço Tom, só desejava largar o marido mecânico e pobretão Wilson, de quem dela era o único enamorado, em cegueira de paixão.

 

No contexto do romance, Scott Fitzgerald situa a oficina e o posto de gasolina de Wilson num cenário desértico da estrada de Long Island a New York, local destacado apenas por um grande cartaz desbotado exibindo um par de olhos gigantes. Trata-se de uma propaganda do oculista, Dr. T.J. Eckleburg, imagem que se comporta como única a observar e testemunhar, sem julgar ou denunciar, os encontros proibidos de Tom e Myrtle, a boa fé do enganado marido Wilson, que nunca desconfiara do comportamento da esposa, e os feitos trágicos ali acontecidos.

 

E são estes olhos de T.J. Eckleburg que contemplam o desfecho de toda a trama, que seria banal não se fizesse fatal, com dois automóveis passando pelo posto de gasolina. Um deles, o cupê azul de Tom Buchanans. O outro é o esplêndido automóvel amarelo de Gatsby; um cadilac luxuosíssimo que ricos e pobres bem gostariam de conduzi-lo.

 

E foi por esta circunstância banal, que Tom Buchanans trocara de automóvel com Gatsby, um dirigindo o carro do outro ao passar pela oficina de Myrtle e Wilson, em demanda a um restaurante reservado na cidade de New York.

 

No cadilac amarelo viajavam Tom, Nick e sua namorada Jordan, personagem acessória da estória, enquanto que no cupê azul seguiam Gatsby e Daisy.

 

Indiferentes, os olhos de TJ Eckleburg viram quando o cadilac amarelo passou pela oficina e Tom resolveu parar para abastecê-lo. Sua amante Myrtle o avistara também, mas não ficara insensível ao vê-lo ao lado de uma mulher, Jordan, que lhe parecera Daisy, a rival esposa de Tom.

 

Passados os automóveis, acontece uma briga entre Wilson e Myrtle, ela confessando a traição, sem lhe dizer o nome do amante.

 

Outra discussão acontece também no restaurante reservado de New York. É Gatsby quem disputa Daisy com Tom Buchanans. Quem ama quem? Eis um imbróglio de difícil solução: Gatsby ama Daisy, que ama Gatsby, mas não ousa deixar Tom, que ama Myrtle, que não ama Wilson e quer abandoná-lo por Tom, que quer conservar todas sem largar ninguém.

 

A discussão é nervosa, e o grupo resolve voltar para casa, com os carros devolvidos a seus donos. No cadilac amarelo estão Gatsby com Daisy ao volante. No cupê azul vão Tom, Nick e Jordan.

 

Nesta viagem de retorno, a passagem do cadilac amarelo pela oficina chama de novo a atenção de Myrtle. Ela acabara de discutir violentamente com Wilson e parte veloz na direção do cadilac amarelo, querendo pará-lo, achando que nele estava o seu bem querido Tom.

 

Há um cruzamento do cadilac com outro automóvel, e um desvio fatal faz Daisy atropelar Myrtle, como se fora um cão; sem salvação e sem socorro. Fora proposital? Fora acidental? “Um mau motorista só está seguro enquanto não depara com outro mau motorista”, eis uma máxima do romance.

 

No cupê azul Tom, Nick e Jordan viram tudo logo atrás. Sabiam que Fora Daisy e não Gatsby quem atropelara Myrtle.

 

O espírito de conservação dos ricos, porém, fala bem mais alto.

 

Sem que ninguém o testemunhasse, eis Tom, em acréscimo de vilania, consolando Wilson, o esposo de quem conspurcara o leito, sem remorsos e tristeza. É ele quem lhe diz ser Gatsby o amante atropelador desconhecido. Justamente Gatsby, o único inocente, restaria culpado de tudo, por inserir-se onde não devia, nem era bem vindo.

 

E o trágico chega ao fim. Wilson localiza a mansão de Gatsby, matando-o indefeso, quando este solitariamente banhava-se na piscina.

 

Em seguida o assassino atira em si mesmo, ficando “o holocausto completo”.

 

Depois, para espanto de Nick, ninguém aparece no enterro de Gatsby. Só ele e alguns serviçais carregam o ataúde. Debalde foi a espera dos muitos avisados. Do cadáver inconveniente, fugiam as centenas de convivas, que lhe sorriram e o cercaram, enquanto vivo.

 

Perdurara um homem de passado nebuloso, embora fosse bem melhor que todos em sua volta. Pelo menos era assim que o vira Nick em seu olhar contemplativo de narração. Era-lhe difícil possuir uma visão igual ao olhar desbotado de Dr. TJ Eckleburg, que tudo vira onipresente, mas permanecera indiferente, por missão.

 

Mais difícil ainda era assumir a omissão dos outros olhos, que convenientemente choravam Myrtle, tornada  pura e imaculada esposa como jamais fora.

 

Se o olhar de Dr. TJ Eckleburg não podia contestar o acontecido, todos os que conheciam o comportamento reprovável de Myrtle e Tom mentiam emudecidos. Assim o queriam todos, sem combinação. Wilson não merecia a verdade desconhecida em sua ação enlouquecida. Compreender-se-ia melhor assim o seu ato de vingança, afinal fora “um homem que vivia para sua mulher, e não para si mesmo”.

 

E também, e sobretudo, porque Gatsby não era nada. Ele era o ninguém que os poderosos espezinham e desejam como solução dos seus dramas.

 

Quanto a Tom e Daisy, “eles eram gente descuidada: destruíam coisas e pessoas e, depois, se refugiavam em seu dinheiro ou em sua indiferença, ou no que quer que fosse que os mantivessem unidos, e deixavam que os outros resolvessem as trapalhadas que haviam feito…” Algo bem comum no cotidiano da vida.

 

Escolhi este tema de Gatsby, quando vi o talentoso jornalista Ivan Valença sendo agredido injustamente. Quarenta e tantos anos de história, em louvada produção e abalizada opinião, só superados por ausência patrimonial e financeira (desnecessárias, quando se tem sempre ao lado a fortuna de uma Ana bem querida). Nada disso fora visto, nem o escudara do ataque solerte mal assestado.

 

Vi em Ivan um Gatsby que todos nós somos um pouco. Abandonados mais das vezes, quando os que acham poder tudo como Tom e Daisy nos assacam, e desprezam, e ofendem.

 

É aí que o entorno se faz raro e vazio, com um abraço aqui, um afago ali, uma solidariedade acolá; dados até num encontro fortuito, em comentário pessoal, de preferência no ouvido, ou por telefone, tudo pouco explícito, e que não foi assim, felizmente!

 

Não foi como os convivas de Gatsby; fugazes. E outros como Tom e Daisy, “gente descuidada, deixando suas trapalhadas no caminho”.

 

Para terminar, vale repetir para Ivan a frase de Nick, que se fizera última aos ouvidos de Gatsby. “Essa gente é horrorosa! Você vale mais que todos eles reunidos”.

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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