O julgamento da emenda do calote

Na data de 08/04/2009, escrevi, aqui nesta coluna, artigo com o título “Devo, não nego, pago quando puder”, que segue abaixo transcrito:

“Você sofreu algum dano em seu patrimônio, gerado por algum agente público? Pagou impostos em valores mais altos do que devia, por abuso do poder de tributar? Servidor público, teve alguma vantagem remuneratória prevista em lei não paga no momento devido? Nesses e em outros tantos casos, propôs a cabível ação judicial em face do Estado e, após anos e anos de longa tramitação, obteve afinal ganho de causa? Já recebeu o valor que lhe é devido, de acordo com ordem judicial definitiva? Ainda não recebeu, eis que o seu crédito está na fila dos precatórios?

Quantos enfrentam situação semelhante no Brasil?

Isso porque, salvo poucas exceções, a regra aplicável é a do Art. 100, § 1° da Constituição Federal:

Art. 100. à exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
§ 1º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 30, de 2000)

Ou seja: é preciso que todo o processo judicial esteja concluído, em fase de execução, até a data de 01 de julho, a fim de que seja incluído no orçamento do respectivo ente público para pagamento até, no máximo, 31 de dezembro do ano seguinte. Noutras palavras: depois de já ter sido lesado pelo Poder Público, depois de sua ação judicial tramitar por dois, quatro, cinco, oito, dez, quinze, vinte ou mais anos, você ainda precisa esperar até o fim do ano seguinte para obter a reparação adequada (em alguns casos, precisa esperar até o final do ano seguinte ao seguinte, que é o que ocorre quando o precatório é apresentado após 01 de julho).

Você está em situação como essa, e ainda não recebeu?!

Não se preocupe mais. O Senado Federal, sensibilizado com essa sua situação de penúria, comovido diante dessa humilhação à qual você está submetido, acaba de aprovar a proposta de emenda à constituição de n° 12/2006.[1]

Por essa proposta, a Constituição terá a sua redação modificada, para incluir, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o “Regime Especial” de pagamento de débitos relativos aos precatórios.

Em que consiste esse “Regime Especial”?

Simples. Ele permite ao ente público prorrogar o pagamento dos débitos de precatórios pendentes em até quinze anos, efetuando-o em parcelas mensais de até 2% (dois por cento) do orçamento das receitas correntes líquidas (no caso dos Estados e do Distrito Federal) e 1,5% (um e meio por cento) receitas líquidas do ente público (no caso dos Municípios).

Estava insatisfeito com a demora? Estava revoltado com o fim do prazo constitucional para o pagamento, sem cumprimento da obrigação? Estava contrariado porque ciente de que o Brasil é uma República Federativa, que se constitui em Estado Democrático de Direito, do qual um de seus elementos essenciais é o devido respeito às ordens judiciais? Estava furioso porque conhecedor de que, quando o Poder Público, a título de punição, promove a desapropriação de propriedade que não observa a função social a que se destina, a indenização ao proprietário é paga em títulos da dívida pública com prazo de resgate de até dez anos (imóvel urbano), enquanto no caso de quitação de dívida reconhecida judicialmente, você já está há mais de dez anos ou perto disso sem receber o que lhe é de direito? Estava desesperado porque sabedor de que quando é você o devedor, o Poder Público não facilita a sua vida, não dilata a contento o prazo para quitação, penhora seus bens e obtém da ordem jurídica instrumentos processuais com os quais é possível ao Poder Judiciário forçar, mesmo contra a sua vontade, o adimplemento da obrigação? Enfim, estava indignado com esse tratamento aberrantemente desigual, com esse verdadeiro calote praticado pelo ente público?

Pois é. Tranqüilize-se. O Senado Federal trabalha por você.”

Pois bem, desde então o projeto foi encaminhado à Câmara dos Deputados, que manteve a sua essência, mas produziu algumas modificações, que exigiram o seu retorno ao Senado Federal para apreciação. No Senado Federal, a proposta foi recebida como nova, cadastrada então como PEC n° 12-A/2006. O Senado Federal, na data de 02/12/2009, aprovou a proposta, e as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, ao final, promulgaram a emenda constitucional n° 62, na data de 09/12/2009, emenda que foi publicada no Diário Oficial na data de 10/12/2009.

De imediato, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil interpôs, no Supremo Tribunal Federal, ação direta de inconstitucionalidade (ADI n° 4357), cujo julgamento já se iniciou (em 06/06/2011) e cujo prosseguimento está previsto para hoje (28/09/2011) à tarde.

Trata-se de um dos mais importantes julgamentos a ser efetuados pelo STF desde a promulgação da Constituição de 1988. Seu resultado indicará a preservação – ou não – de uma das bases fundamentais do Estado Democrático de Direito: o respeito às decisões judiciais, a garantia da efetividade da jurisdição e a contenção dos abusos de poder. Se o STF não declarar a inconstitucionalidade da emenda constitucional n° 62, ter-se-á a institucionalização do calote estatal e a oficialização de que o Estado pode lesar o direito dos cidadãos, sem que haja mecanismos efetivos de reparação dessa lesão.

A preservação do Estado Democrático de Direito está em jogo hoje na pauta do STF. Acompanhemos.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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