Acabo de ler o corajoso discurso que José Theodomiro de Araújo, então secretário Executivo do Iman – Instituto Manoel Novaes para o Desenvolvimento da Bacia do São Francisco, proferiu quando presente em uma das apresentações públicas do PROJETO DE UTILIZAÇÃO DAS ÁGUAS DO RIO SÃO FRANCISCO, PELO NORDESTE SETENTRIONAL, mais especificamente na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, no dia 21 de outubro de 2003. A preleção fora dirigida ao vice-presidente José Alencar, responsável político pela tarefa de convencimento sobre a viabilidade técnica do Projeto, especialmente junto à população ribeirinha. A árdua tarefa de Theodomiro era exatamente oposta à daquela reunião, pois pretendia ele demonstrar o absurdo de se fazer a transposição das águas do Velho Chico de forma apressada e unilateral.
Mais ainda, estava ele corretamente revoltado com a infeliz frase do presidente Lula sobre a transposição, mesmo porque simbolizava um autoritarismo que se pensava fazer parte do passado brasileiro. Eis o que resumiu o presidente Lula: “- VOU ACABAR ESSA TRANSPOSIÇÃO NA MARRA, NEM QUE SEJA COM LATA D`ÁGUA NA CABEÇA”. É dizer em outras palavras: o Governo Federal deixava claro que não queria escutar a população, mas que apenas desejava ser escutado para fins de manter uma aparência de diálogo democrático.
E Theodomiro estava navegando nas águas da razão, pois o Velho Chico que ver de volta os peixes e as canoas que o enfeitava, não mais as teimosias, as ganâncias, os carros pipas, os potes, as latas na cabeça ou outros apetrechos que humilha a sua história. Ademais, como lembrou ao Vice-Presidente, soava estranha a nova metáfora do nordestino Lula, pois com ele já discutira a questão da Bacia do São Francisco, precisamente no período da campanha eleitoral, quando convidado pelos organizadores da famosa Caravana da Cidadania. Na época foi aconselhado por Francisco Graziano de que não deveria falar em transposição das águas do São Francisco, uma vez “o candidato Lula já havia se manifestado, peremptoriamente contrário ao Projeto, como já publicado por toda a Imprensa Nacional”.
Lembrando a súbita metamorfose que atingiu o ex-presidente FHC, com o seu famoso “esqueçam tudo o que esqueci”, vaticinou Theodomiro: “Afinal, o que ocorre com Brasília? Uma crise crônica de amnésia? (…) E agora, no presente, o que mudou, o clima do Nordeste, ou o nosso Presidente? Parece que realmente, paira sob o céu do Distrito Federal, uma aura esotérica capaz de gerar um ser mutante do Homo sapiens , o Homo sapiens brasilienses , que ao esquecer os compromissos, assume a figura de mando, e administra a nação, ao seu próprio talante.”
Não queria Theodomiro que suas palavras fossem compreendidas como piranhas a devorar a incoerência governamental, embora contivessem o mesmo tom ativo que o fizera orador da turma de engenharia agrônoma do ano 1959 (UFBA) quando levantou a âncora de sua história política e não mais parou de defender o Amigo Chico. Era como um experiente e amistoso surubim que pretendia ser entendido, mesmo porque sempre morou nas águas do São Francisco como se ali fosse o seu habitat original, a sua razão de viver. E não poderia ser diferente, pois do Rio retirou toda a inspiração para os vários trabalhos técnicos publicados, além da cumplicidade amiga que o ajudava enquanto nadava nas águas de vários órgãos e entidades, como a Suvale, Codevasf, Programa de Pequena Irrigação no Estado da Bahia, Coordenadoria de Prestação de Apoio à Irrigação, Ceeivasf, Comissão Interestadual Parlamentar para o Estudo do Desenvolvimento Sustentado do Rio São Francisco, Iman, Univale e UFBA.
Era também com gratidão que pedia que não matasse o seu Parceiro Chico, pois sabia que pesava sobre as suas nadadeiras homenagens e medalhas importantes, a exemplo dos Títulos Honoríficos de Cidadão Baiano e Sergipano e a Medalha comemorativa dos 500 anos do descobrimento do rio São Francisco, instituída pelo Governo de Minas Gerais. O peixe Theodomiro encerrou o seu discurso dizendo que estava oferecendo a sua “cabeça à guilhotina”, ou melhor escrevendo, que poderia estar sendo pescado e futuramente fritado pela máquina governamental. Mas, como disse acreditar, há 42 anos pegou rabiça do arado e jamais olhou para traz, pois “a verdade vence tudo”.
Ainda não sabemos quem vencerá a batalha fluvial do Rio São Francisco, tampouco sabemos quando e como será travada. O que sabemos é o que o Velho Chico não poderá mais contar com o comando ativo de um dos seus mais importantes marechais, pois o peixe José Theodomiro de Araújo agora mergulha nas águas profundas e silenciosas do Rio Éden. Mas também sabemos que os homens e os peixes vivem enquanto suas idéias permanecerem nadando ativas, corajosas e garbosas no imperecível rio chamado História.