Como dito na semana passada, O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas Corpus nº 91.952 (Relator Ministro Marco Aurélio), decidiu que o uso de algemas em cidadão durante todo o seu julgamento pelo Tribunal do Júri traduziu abuso de poder e ilegalidade (julgamento efetuado na sessão de 07/08/2008). Isso com base na compreensão de que a utilização de algemas deve ser efetuada apenas em caráter excepcional. No caso, não teria havido fundamentação aceitável para a utilização de algemas, e que tal circunstância, perante os jurados, gerou influência negativa, na medida em que tiveram a suposição de que se tratava de uma pessoa perigosa e, portanto, provavelmente culpada, antes mesmo de apreciar as provas e os argumentos de defesa. Naquela mesma sessão, também se decidiu que era o caso de ser aprovado o enunciado de mais uma súmula de efeito vinculante, ficando o Ministro Marco Aurélio encarregado de elaborar uma proposta de redação. Na sessão de 13/08/2008, o STF aprovou o enunciado da Súmula Vinculante mencionada, com a seguinte redação: SÚMUA VINCULANTE N° 11 – Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. Aqui, neste mesmo espaço da Infonet, escrevi um texto no qual, em linhas gerais, apresentei posicionamento concordante com o que afinal acabou sendo decidido pelo STF no julgamento do Habeas Corpus nº 91.952, sem prejuízo de algumas considerações críticas.[1] Contudo, não posso concordar com a edição de Súmula Vinculante a partir do julgamento de um único caso, à revelia do que prevê a própria Constituição Federal, em dispositivo incluído pela emenda constitucional nº 45/04. Prevê o Art. 103-A da Constituição Federal: Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Vide Lei nº 11.417, de 2006). (grifou-se). A autorização constitucional para o STF editar súmula com efeito vinculante está, portanto, submetida a certos pressupostos. Um deles: a edição da súmula vinculante pode ser feita “após reiteradas decisões sobre matéria constitucional”. Ora, não houve reiteradas decisões do STF sobre a controvérsia constitucional que envolve o uso de algemas. Houve uma decisão, e mesmo assim adstrita ao uso de algemas por réu em Tribunal do Júri. No caso do HC n° 91.952, não esteve em julgamento a utilização de algemas quando da realização de prisões (seja em flagrante delito, seja por ordem judicial), ainda que os Ministros tenham debatido a causa também sob essa ótica. É bem verdade que houve, no julgamento, menção a um precedente da própria Suprema Corte. Contudo, esse precedente apontado era da Relatoria do Ministro Francisco Rezek. Ora, o Ministro Francisco Rezek deixou a Corte em 1997! O precedente citado é muito antigo, e a Constituição exige que a controvérsia autorizadora da edição de Súmula Vinculante seja atual: Art. 103-A (…) § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica (grifou-se). Mais ainda: a “controvérsia atual” autorizadora da edição de súmula vinculante deve ocorrer entre órgãos judiciários ou entre esses e a Administração Pública. Não foi o que ocorreu, no caso. Não houve controvérsias envolvendo julgamentos com entendimentos diversos por órgãos judiciários, nem tampouco envolvendo atos concretos da Administração Pública. A controvérsia sobre o uso de algemas envolveu debate público, com participação legítima nesse debate do Presidente do STF, do Ministro da Justiça, além de diversas entidades (por exemplo, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Associações de Delegados, Associações de Magistrados, Associações de Membros do Ministério Público) e autoridades (por exemplo, o Procurador-Geral da República), em decorrência de recentes (à época do julgamento do HC nº 91.952) prisões efetuadas por ordem judicial, com utilização de algemas, em imagens exibidas pela televisão em rede nacional. A edição da Súmula Vinculante nº 11 é bem significativa da procedência dos enormes receios de tantos quantos se opuseram à aprovação do ingresso desse instituto no ordenamento jurídico constitucional brasileiro. A pretexto de garantir maior celeridade na tramitação dos processos judiciais (o que é uma demanda da sociedade, sem dúvida alguma, e que hoje é garantia constitucional explícita[2]), ofenderam-se várias outras garantias constitucionais e princípios fundamentais, como por exemplo a garantia de acesso à Justiça e o princípio da separação de poderes. Com efeito, a possibilidade de o STF editar Súmulas Vinculantes, cujas supostas violações admitem a propositura de reclamações a serem interpostas diretamente à Suprema Corte[3], concentra uma gama excessiva de poderes nas mãos de poucos (ainda que esses poucos sejam, todos, dotados do mais alto saber jurídico e de reputação ilibada). Poder em demasia, já dizia Montesquieu, é a tentação do abuso. Ao adotar como política institucional a edição proliferada de Súmulas Vinculantes, o STF usurpa o espaço de atuação constitucional e institucional do Poder Legislativo, tornando-se o Supremo Legislador. Ficou adiada, para a sessão de hoje à tarde (quarta-feira, 20/08/2008), o julgamento, pelo STF, do mérito da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 12, na qual é pedida a declaração de constitucionalidade da famosa Resolução nº 07/2005 do Conselho Nacional de Justiça, que “Disciplina o exercício de cargos, empregos e funções por parentes, cônjuges e companheiros de magistrados e de servidores investidos em cargos de direção e assessoramento, no âmbito dos órgãos do Poder Judiciário e dá outras providências” (em outras palavras, resolução que proíbe a prática do nepotismo no âmbito do Poder Judiciário), bem como do Recurso Extraordinário nº 579951/RN, interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte em face de acórdão do Tribunal de Justiça daquele estado, que entendeu que “somente uma lei específica poderia estabelecer restrições à investidura de parentes nos cargos de confiança do Município”. Como dito aqui na semana passada, O julgamento desse RE nº 579951/RN, previsto para ocorrer juntamente com o julgamento de mérito (definitivo) da ADC nº 12, pode servir de complemento ao combate ao nepotismo inicialmente desencadeado pela Resolução nº 07/2005 do CNJ. O combate ao nepotismo tem sido uma bandeira da sociedade civil. Tramita no Congresso Nacional uma proposta de emenda à constituição que, se aprovada, deixará explícita no texto constitucional a proibição do nepotismo. Todavia, essa tramitação se faz com enormes resistências e muita lentidão. O julgamento de hoje à tarde no STF pode significar a desnecessidade de aprovação dessa proposta de emenda constitucional. Isso porque, ao julgar o mérito da ADC nº 12 (confirmando o provimento liminar) e o RE nº 579951, muito provavelmente o STF editará uma Súmula Vinculante que explicite a vedação do nepotismo em todos os Poderes e em todas as esferas públicas. Seguindo a contagem das Súmulas Vinculantes (tema principal da coluna de hoje), registro que o STF, na semana passada, além de aprovar o enunciado da Súmula Vinculante nº 11 (acima transcrito), aprovou também o enunciado da Súmula Vinculante nº 12: “A cobrança de taxa de matrícula nas Universidades Públicas viola o disposto no artigo 206, inciso IV, da Constituição Federal”. [1] https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=76369&titulo=mauriciomonteiro. A propósito, para o contraponto, recomendo a leitura do comentário de Jackson Souza, ali efetuado, bem como do texto da Delegada da Polícia Federal Arryanne Queiroz, no site do Consultor Jurídico, cujo sugestivo título é “Algemas sim: preso é preso, deve ser algemado e com as mãos para trás” (https://.conjur.com.br/static/text/69016,1). [2] Art. 5° (…) LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) [3] Art. 103-A (…) § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.Combate ao Nepotismo em Pauta
Mais duas
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