O tocador de realejo.

Seu nome era Wellington, Senhor Wellington, melhor dizendo. Um homem simples, alguém não titulado como senhor, mas tratado assim, por aquisição de resistência e sobrevivência dos que conseguem  envelhecer.

Era um velho? “Não, absolutamente! Talvez fosse um sexagenário apenas, o que não é nada!”- Dirão muitos, sobretudo aqueles que definem em soberbia o destino dos outros para sobreviver no fausto de própria esbórnia republicana.

Os sexagenários não estão sendo listados assim, pelos insuspeitos e sempre mais que suspeitos cálculos atuariais, nos quais a matemática, tão difícil matéria de se aprender e manusear, vem sendo manipulada, para bem servilizar muitos, por inculpação de déficits e dívidas orçamentárias, e  a  premiar  não poucos, nem raros, incontáveis resistentes a guilhotinas, governos e agremiações partidárias?

Não, Wellington era um homem simples, sem tais preocupações de soluções técnicas e demais espertezas. Alguém pouco esperto como a imensa maioria, tão comum e despremiada, enquanto paisagem esquecida.

“Era apenas um desimportante!” – Dirá a arrogância de uma sociedade que enaltece o ser, definindo a felicidade em termos de ganho material apenas, destacando o homo-economicus e desprezando os seus rivais; o homo-ethicus e até mesmo o homo-emphaticus.

Como se a ética e a mútua empatia devessem  render-se às cifras, desprezando a insatisfação já denunciada pelo economista Daniel Cohen em mal-estar cada vez mais amplo e global, constatado em todas as latitudes e povos, sobremodo a partir dos últimos duzentos anos da história humana.

Algo que seria impensável nas repúblicas atuais, gestadas em plena democracia representativa e império da lei, e que não vêm satisfazendo o coração humano, mesmo em tempos de fastígio econômico e liberdade.

Um descontentamento que seria inexplicável em tantas manifestações “contra tudo que aí está”, repetidas à exaustão.

Algo inconcebível, sobretudo perante os postulados ideais de Direito do Homem, já vigentes desde a grande Revolução Francesa, e as mais recentes doutrinas ditadas pela ONU, em louvação da igualdade e preces de igualdade.

Uma evidência que a mútua tolerância e a aceitação fraterna, inspiradas em sofrimento e dor de muita  sangria e horror repetidos, ainda não foram conquistadas mesmo com  tantas cabeças amputadas e tanta fuzilaria de guerras inúteis.

Não estariam tais resoluções e as modernas religiões se mostrando insuficientes para a plena satisfação humana, cuja convivência vem padecendo de progressiva degradação, uma espécie de decomposição irreversível em desfazimento deliquescente, um desafio a pensadores, filósofos e religiosos?

E nesta constatação de descrença e insatisfação coletivas não estão as democracias sociais-liberais feridas de morte enquanto “fim da História”?

Em verdade, queira-se ou não, há uma insatisfação geral, uma repulsa aos novos tempos, suas metas de eficiência constante e seu menoscabo às ações de solidariedade, sobremodo quando se fala tanto no tal  “empreendedorismo”, esta nova heresia que nos aporta ao extermínio, enquanto panaceia Darwinista de felicidade, erigindo o “homo economicus” e sua avareza, como o único ente capaz de merecer a sobrevivência de espécie, e merecer até o céu por extensão.

E nesta nova idolatria, cada vez mais propagada e repelida querem-nos verdadeiros cavalos de corrida disputando a coroa inútil de um derby.

Uma corrida inútil, porque nessa disputa o cavalo vencedor não ganha o troféu, nem o jóquei, ambos devendo alimentar-se menos, e se preciso passar até fome para pesar bem pouco, ganhando somente o dono do animal, sempre um adiposo proprietário, em servilidade de terceiro milênio, com a bestificada plateia urrando descabeçada nas galerias.

Galerias à parte, este devaneio tolo de cavalo de corrida vem deixando a humanidade insatisfeita, o que constitui um perigo para as repúblicas, afinal desconfia-se das instituições, inclusive da democracia representativa, última conquista do liberalismo social moderno, por encastelar regras e perenizar desigualdades insolúveis; entronizando em época de igualdade por cidadania, uma espécie de servilismo amparado na lei, por bem aceito na comuna, no sindicato ou guilda, seja que nome se dê às corporações hodiernas, existentes apenas para a manutenção de hegemonias e direitos injustos, amplificando a insatisfação coletiva.

Outras hegemonias à parte, por acaso são os ganhos de competição e materiais as únicas coisas importantes da vida? É isso apenas que alegra o homem que deveria ser apenas cordial?

Qual seria, neste contexto, a melhor ocupação, o emprego mais agradável? Seria aquele que resultasse em maiores ganhos materiais, ou um troféu de cavalo vencedor?

E o que dizer do Sr. Wellington, aquele que se fez conhecer por tocar um realejo, se fazendo alegre e brincalhão com os pequeninos estudantes, ele bedel apenas, ajudando a educar uma multidão de pequenos sorrisos no Colégio do Salvador, o mais antigo e mais zeloso da cidade?

Sim. O Sr. Wellington era apenas um funcionário.

Não era um professor, nem um dirigente, ou supervisor. Era um auxiliar educador, somente, nem eu sei o que ele era em tão múltipla tarefa.

Alguém cujo trabalho realçava sobremodo o Colégio, com simplicidade criativa, demonstrando o acolhimento, enquanto família estendida, de mestres e dirigentes, instrutores, zeladores e diretores, nas suas funções nunca inferiores de educar as crianças que ali estudam para serem os grandes líderes do amanhã.

Era um pequeno elo, dir-se-á de toda pedra angular, ou tosca engrenagem, em tantos mancais, correias e forças motrizes, presentes ou substituídos  nas instituições vitoriosas, que resistem no tempo se refazendo e modernizando.

Por acaso um colégio de tradição octogenária se faz e continua sem muitos elos endentados para o bom êxito de tão complexo trabalho?

Nos lustros e décadas vencidos, professores, funcionários e dirigentes não passam, outros assumindo, permanecendo o exemplo e a orientação; uma história repetida em novos gestos e vozes, reverberando aquilo que foi, mas permanece como inspiração de continuidade?

Não está sendo agora com o Sr. Wellington que partiu, o coração parando-lhe os passos e o ritmo, restando o realejo em silêncio?

O silêncio chora agora a saudade do tocador de realejo, tão simples, sorridente e delicado, tudo aquilo que bem embevecia as crianças, por elemento próprio, e a seus pais que se apropriavam daquele inusitado trinado, enquanto refrigério de esquecimento das apreensões comuns a dias e horas.

E porque não dizer deste avô que hoje já não corre tanto, mas que contemplava a sua alegria, sempre sorrindo para os meninos, seja no realejo para gracejo das crianças, ou silvando um apito, para controlar o tráfego de automóveis, na travessia da rua em segurança.

Ficará em mim também uma saudade particular do Sr. Wellington, abraçando-me e chamando-me de “Vovô, meu vovô!”, para protesto de meus netos Pedro Henrique e João Marcelo, que repeliam a brincadeira como se fora verdade: “Ele não é seu avô, ele é meu avô!”

Na vida a gente carrega lembranças e muitas saudades.

Agora ficou-me a saudade do Sr. Wellington, um homem simples, um funcionário humilde do Colégio do Salvador, que restou bem lembrado como “tocador de realejo”.

Alguém que não se quis um cavalo campeão.

Quantos, porém, no afã inútil de cavalo de corrida conseguem vencer o derby mas não deixam saudade nem encômios verdadeiros?

Como minha verdade é só minha e do meu prosseguir apenas, carrego comigo muitas vidas que permanecem bem vivas e eternas enquanto sigo.

Agora está este “tocador de realejo”, deixando seu harpejo na existência que avança comigo nos caminhos por onde eu conseguir passar.

Por mim e pelos meus netos, obrigado, ó tocador de realejo!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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