Cheguei a Cabo Verde, África, no dia 10 de abril, sem qualquer pretensão turística, apenas interessado na discussão que seria travada no VII União das Ordens e Associações dos Advogados da Língua Portuguesa. É que tenho o péssimo costume de me concentrar nas atividades institucionais que participo, quase não sobrando tempo para conhecer as cidades que abrigam os eventos. Mas, confesso, em Cabo Verde foi completamente diferente, pois a característica especial do país me oportunizou conhecer um pouco de sua história, seus costumes e de língua crioula, a outra linguagem oficial. Primeiro, porque o país é um pequeno arquipélago que ousou desafiar o bravio Atlântico, fazendo-se corajosamente nascer embalado na fervura agitada de um vulcão. Segundo, por ser extremamente pequena a sua capital, me permitindo descobrir seus lugarejos mais conservados e a sua musicalidade tão irmã. E, por fim, pelo conteúdo das visitas que fiz, pois me encontrei com o Presidente da República, a Presidenta do Supremo, o Presidente da Assembléia, a Ministra da Justiça e o Procurador da Justiça, dentre outras autoridades nacionais. Aliás, sendo o cabo-verdiano um “típico brasileiro”, a informalidade imperou mesmo quando formal o ambiente, revelando-se segredos, mecanismos e mimos que eram desconhecidos de todos os visitantes. O Poder Judiciário de lá, por exemplo, além possuir o defendido órgão de controle externo de suas atividades, não está rigidamente hierarquizado, o que faz com todos os magistrados, através de uma espécie de rodízio, possa pertencer à Corte Suprema, logo depois voltando à condição de juiz comum. Todos podem, assim, ocupar os cargos mais importantes do país, voltando às atividades iniciais sem qualquer constrangimento, como estava a fazer o ex-Primeiro Ministro Carlos Veiga que, retornando à advocacia, acabara de ser eleito Presidente da Ordem dos Advogados de Cabo Verde. A conseqüência desse democrático revezamento era visível, as autoridades se tornavam pessoas mais simples e próximas da população, o que tem evitado a prática de atos de corrupção, nepotismo, remunerações exorbitantes ou concursos públicos viciados. Neste aspecto, o Embaixador do Brasil em Cabo Verde, Vitor Gobato, confidenciou-me que achava fantástica esta honesta simplicidade do cabo-verdiano, o que fez com que o pecado da inveja tomasse de assalto o meu pensamento. E as ruas da simplicidade não param aí, os caboverdianos ainda hoje comemoram orgulhosamente a única rua asfaltada da capital, seus dois cinemas, o gostoso “Vinho do Fogo” produzido milagrosamente nas encostas de um vulcão e, principalmente, a musicalidade capitaneada por Cesária Évora. Orgulham-se, também, do visível crescimento do seu país, com seus carros novos, ruas limpas e organizadas, recheadas de casas e mansões que demonstram que algo de positivo estava a ocorrer, até porque cumpriam religiosamente os seus compromissos externos. E o crescimento não decorria das indústrias ou recursos naturais extraídos do país, pois Cabo Verde originalmente não possuía água potável, fontes de energia, solo fértil ou minerais valiosos. Aprenderam, então, a retirar a energia dos ventos, a transformar a água do mar e, principalmente, a aproveitar a sua posição estratégica para se tornar parada obrigatória de aviões e navios que circulam pela vasta África. E tudo isso decorria, como explicavam, da consciência, organização, determinação e compromisso dos cabo-verdianos com o destino de seu país. Como lá não tem faculdade ou trabalho para todos, resolveram a questão estudando ou trabalhando em outros países, formando, em conseqüência, uma população culta, plural, experiente e cosmopolita. Os que se formam voltam para trabalhar em Cabo Verde ou, não podendo assim fazer, investem o que ganham no exterior para desenvolver economicamente o seu país, como fazem vários mineiros de Governador Valadares. A estudiosa elite e os trabalhadores cabo-verdianos compreenderam, com admirável perfeição, que o destino de seu país esta diretamente vinculado às ações positivas que forem capazes de implementar. Como o Estado não podia suprir as necessidades mínimas da população, não tiveram dúvida em superar tais obstáculos, fazendo, cada um, exemplarmente, a parte que lhe cabia como responsabilidade social. É escrever em outras palavras: não se serviram do Estado, mas permitiram que o seu país se servisse do que podiam oferecer. Infelizmente, tal pensar não ultrapassou as barreiras impostas pelo oceano Atlântico, tampouco atracou no Porto de Sergipe. Aqui, a “estudiosa elite sergipana”, não raro, demonstra o seu voraz apetite para se servir do manjar conhecido como patrimônio público, acreditando, inclusive, que é uma convidada legitima e natural. Não fica sequer inibida ou ruborizada quando flagrada em plena gula, pois, ao contrário dos cabo-verdianos, para ela o Estado é o fim em si mesmo, a mãe provedora dos cargos públicos ou uma grande propriedade privada. * Cezar Britto é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear. cezarbritto@infonet.com.br