O presidente Lula errou feio quando, esquecendo a impessoalidade do cargo que exerce, determinou a expulsão do jornalista estadunidense Larry Rohter, que o agredira levianamente em artigo publicado no New York Times. Como se um erro justificasse outro erro, o Presidente abusou da sua justa indignação quando passou a agredir a liberdade de expressão, patrimônio fundamental para que se viva em um país que respeita o Estado Democrático de Direito. Também pisou na bola no campo das relações internacionais, principalmente porque arranhou a sua correta e corajosa postura de estadista mundial, respeitado exatamente por sua luta e coerência histórica. É bem verdade que manter a paciência diante da arrogância de vários estadunidenses é bastante difícil, mesmo porque muitos se sentem senhores dos anéis e das riquezas do mundo. Basta lembrar aquele episódio em que cidadão estadunidense Douglas Allan Skolnick foi preso por afrontar, com gestos obscenos, as autoridades brasileiras que o identificavam administrativamente ao desembarcar no Brasil, como se fazia no seu país natal. Aquela prisão não passaria de um infeliz incidente, até comum em alguns aeroportos do mundo, se uma outra arrogância não fosse praticada pelo citado cidadão, revelando o atual estado de embriagues que contagia grande parte dos habitantes do poderoso EUA. Todos lembram que o senhor Douglas Allan Skolnick, no momento em que estava preso, aproveitando que ganhava espaço público para falar, sacou de sua “sóbria cachola superior” o conceito de prisão que entendia aplicável ao caso em questão. Pouco importava que tenha sido tratado de forma idêntica ao que se pratica em todos os regimes democráticos, permitindo-se, principalmente, que se comunicasse com quem desejasse, para que providenciasse a sua defesa. A sua revolta estava simplesmente na idéia da prisão, pois, segundo disse, “não era macaco para estar preso”, pois prisão é jaula destinada a animal ou, como muitos pensam no Brasil, é coisa para abrigar bandidos, pobres, negros e prostitutas. O triste é saber que ambos os incidentes diplomáticos simbolizam apenas a ponta de um iceberg cada vez mais visível no jeito estadunidense de degustar o mundo, fazendo aflorar uma gélida e fluente montanha do preconceito. Para vários setores e cidadãos estadunidense prisão é mesmo coisa para macaco, ou melhor escrevendo, para os cidadãos que habitam os países de terceiro mundo, os árabes, os miseráveis e os seus inimigos-terroristas. Basta observar como são tratados estes cidadãos quando desembarcam nos aeroportos estadunidenses ou, quando acusados de clandestinos, como são trancafiados enquanto aguardam ser deportados para os seus países de origem. As fotografias dos prisioneiros iraquianos torturados em Abu Gharib, a prisão usada pelos militares estadunidenses para prender e interrogar os suspeitos de colaboração com os ataques no Iraque, bem demonstram o grave estado de embriagues moral que atingiu a nação mais poderosa do mundo. Era impressionante a expressão contrariada do secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, quando depôs no Senado sobre as fotos divulgadas pela Internet. Sua raiva era contra a divulgação das fotos, não pelo fato de que seres humanos estavam sendo torturados covardemente pelos seus sádicos comandados. A tortura ele já sabia através de relatórios minuciosos, o que ele não contava era com a divulgação das fotos que revelavam o pileque moral dos EUA. A prova da tortura era o que mais chocava os moralistas de plantão, mesmo porque a prática de tortura parece integrar o arsenal bélico permanente dos militares estadunidenses. Aliás, os organismos internacionais de Direitos Humanos não se cansam de apontar a participação direta, o apoio ou a ajuda dos EUA para os regimes que praticam a tortura, a exemplo do que já fizerem nas ditaduras que macularam o Brasil, Chile, Argentina, Honduras, Nicarágua e Haiti. A carraspana não para aí, a Suprema Corte dos EUA, órgão judiciário máximo do país, responsável pelo controle da constitucionalidade e da defesa Estado Democrático de Direito, também entrou na festança. A Corte Estadunidense brindou o mundo com legitimação do Campo de Concentração de Guantánamo, prisão localizada no sudeste de Cuba, onde qualquer cidadão do mundo pode ser preso, sem ordem judicial, sem comunicar a família ou mesmo apresentar qualquer tipo de defesa. Mais ainda, podendo ser livremente humilhado e torturado, como recentemente denunciou a insuspeita Cruz Vermelha. A embriagues que hoje turva o olhar estadunidense sobre o mundo precisa ser urgentemente curada, sob pena de virar um irreversível e crônico caso de alcoolismo. Não basta apenas libertar ou indenizar os presos de Abu Gharib, pois apenas serviram de aperitivos no festival etílico que hoje é fornecido compulsoriamente ao mundo. É preciso que a ONU e as nações saiam também da ressaca que imobiliza suas ações, obrigando que os incômodos e verdadeiros bêbados deixem efetivamente de bagunçar a Festa da Paz Mundial. * Cezar Britto é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear. cezarbritto@infonet.com.br