Os limites da imunidade parlamentar

Causou enorme polêmica a declaração do deputado federal Jair Bolsonaro, no programa de televisão “CQC”, da Rede Bandeirantes, na qual, respondendo a uma pergunta formulada pela cantora Preta Gil, sobre o que faria se o seu filho se apaixonasse por uma mulher negra, disse: "Não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Não corro esse risco porque os meus filhos foram muito bem educados e não viveram em ambientes como lamentavelmente é o teu" . Em nota divulgada posteriormente, o deputado Bolsonaro afirmou que entendeu errado a pergunta e achou que a artista se referia a uma relação homossexual (http://www.jb.com.br/pais/noticias/2011/03/29/dezenas-de-deputados-representam-contra-jair-bolsonaro-acusado-de-racista/).

Tais declarações geraram indignação de diversos setores da sociedade. A cantora Preta Gil anunciou que iria processar o deputado. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil anunciou pedido de cassação do mandato por quebra de decoro parlamentar. Diversos deputados federais protocolaram representação na Câmara dos Deputados, com o propósito de ver investigado o fato no âmbito do Conselho de Ética.

Houve, porém, quem apontasse que, por ser deputado federal e gozar de imunidade, Jair Bolsonaro não poderia ser responsabilizado por essas declarações, consideradas ofensivas a negros e homossexuais.

A oportunidade é excelente para abordarmos, aqui, o instituto jurídico da imunidade parlamentar, bem como os seus limites.

Não é possível dissociar a análise do tema da imunidade parlamentar do princípio constitucional da separação e independência dos poderes. Enquanto os demais poderes possuem garantias institucionais que possibilitam aos seus membros o fiel desempenho de suas atribuições , sem interferências indevidas [Os juízes, por exemplo, possuem, nos termos da Constituição, as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios; o Presidente da República possui a garantia de não ser preso, salvo após sentença condenatória definitiva, bem como a de somente poder ser processado mediante prévia licença da Câmara dos Deputados, por 2/3 dos votos, bem ainda de não poder, na vigência do mandato, ser processado por atos estranhos ao exercício de suas funções], o poder legislativo é aquinhoado com a proteção dos seus membros, eleitos pelo povo para mandatos de representação política, contra eventuais ações dos membros dos demais poderes – ou ainda de particulares – que lhes possam prejudicar ou impedir o bom, livre e desembaraçado exercício das atribuições parlamentares.

Como o parlamento, no arcabouço da doutrina liberal-iluminista, é o órgão representativo da vontade geral da nação, responsável pela definição das normas jurídicas impessoais e gerais a regular a vida social, bem como principal fórum de discussão política dos destinos do Estado, além de fiscalizador dos atos do poder executivo, necessita possuir a independência apta para não se tornar um mero instrumento da vontade do governante.  A imunidade parlamentar caminha nessa direção, ao assegurar ao parlamentar, representante do povo e da nação, segurança e tranqüilidade para o cumprimento do seu dever. 

Assim é que o Art. 53 da Constituição Federal estabelece expressamente que “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.

O Supremo Tribunal Federal, todavia, já decidiu que os deputados e senadores somente são invioláveis por suas palavras, opiniões e votos quando guardem conexão, ainda que indireta, com o exercício do mandato:

"Queixa-crime ajuizada por ex-Senador da República contra Deputado Federal, por infração aos arts. 20, 21 e 22 da Lei de Imprensa. Delitos que teriam sido praticados por meio de declarações feitas em programa de televisão apresentado pelo querelado. Alegação de imunidade parlamentar (art. <53> da Constituição da República): improcedência. As afirmações tidas como ofensivas pelo querelante não foram feitas em razão do exercício do mandato parlamentar: hipótese em que o querelado não está imune à persecução penal (imunidade material do art. <53> da Constituição da República)." (Inq 2.390, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 15-10-2007, Plenário, DJ de 30-11-2007.)

"A imunidade material prevista no art. <53>, caput, da Constituição não é absoluta, pois somente se verifica nos casos em que a conduta possa ter alguma relação com o exercício do mandato parlamentar. Embora a atividade jornalística exercida pelo querelado não seja incompatível com atividade política, há indícios suficientemente robustos de que as declarações do querelado, além de exorbitarem o limite da simples opinião, foram por ele proferidas na condição exclusiva de jornalista." (Inq 2.134, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 23-3-2006, Plenário, DJ de 2-2-2007.)

"A garantia constitucional da imunidade parlamentar em sentido material (CF, art. <53>, caput) – que representa um instrumento vital destinado a viabilizar o exercício independente do mandato representativo – somente protege o membro do Congresso Nacional, qualquer que seja o âmbito espacial (locus) em que este exerça a liberdade de opinião (ainda que fora do recinto da própria Casa legislativa), nas hipóteses específicas em que as suas manifestações guardem conexão com o desempenho da função legislativa (prática in officio) ou tenham sido proferidas em razão dela (prática propter officium), eis que a superveniente promulgação da EC 35/2001 não ampliou, em sede penal, a abrangência tutelar da cláusula da inviolabilidade. A prerrogativa indisponível da imunidade material – que constitui garantia inerente ao desempenho da função parlamentar (não traduzindo, por isso mesmo, qualquer privilégio de ordem pessoal) – não se estende a palavras, nem a manifestações do congressista, que se revelem estranhas ao exercício, por ele, do mandato legislativo. A cláusula constitucional da inviolabilidade (CF, art. <53>, caput), para legitimamente proteger o parlamentar, supõe a existência do necessário nexo de implicação recíproca entre as declarações moralmente ofensivas, de um lado, e a prática inerente ao ofício congressional, de outro. Doutrina. Precedentes." (Inq 1.024-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 21-11-2002, Plenário, DJ de 4-3-2005.)

"A garantia constitucional da imunidade parlamentar em sentido material (CF, art. <53>, caput) – destinada a viabilizar a prática independente, pelo membro do Congresso Nacional, do mandato legislativo de que é titular – não se estende ao congressista, quando, na condição de candidato a qualquer cargo eletivo, vem a ofender, moralmente, a honra de terceira pessoa, inclusive a de outros candidatos, em pronunciamento motivado por finalidade exclusivamente eleitoral, que não guarda qualquer conexão com o exercício das funções congressuais." (Inq 1.400-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4-12-2002, Plenário, DJ de 10-10-2003.) No mesmo sentido: Pet 4.444, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 21-10-2008, DJE de 28-10-2008.

"Malgrado a inviolabilidade alcance hoje 'quaisquer opiniões, palavras e votos' do congressista, ainda quando proferidas fora do exercício formal do mandato, não cobre as ofensas que, ademais, pelo conteúdo e o contexto em que perpetradas, sejam de todo alheias à condição de Deputado ou Senador do agente. Não cobre, pois, a inviolabilidade parlamentar a divulgação de imprensa, por um dirigente de clube de futebol, de suspeita difamatória contra a empresa patrocinadora de outro e relativa a suborno da arbitragem de jogo programado entre as respectivas equipes, nada importando seja o agente, também, um Deputado Federal." (Inq 1.344, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 7-8-2002, Plenário, DJ de 1º-8-2003.)

Conclusão: a imunidade parlamentar, consistente na sua inviolabilidade, civil e penal, por quaisquer de suas palavras, opiniões e votos, não confere ao parlamentar carta branca para, desviando-se da finalidade funcional, dela abusar para ofender, humilhar, discriminar quem quer que seja.

Nos termos da sedimentada jurisprudência do STF, o parlamentar não estará imune a processos cíveis e criminais por palavras, opiniões e votos que não guardem conexão com o exercício de sua função, com o exercício da atividade para a qual foi eleito. Demais disso, abusar da imunidade parlamentar para ofender, injuriar, difamar, caluniar, discriminar, humilhar, aviltar a dignidade da pessoa humana, traduz abuso de prerrogativa constitucional, procedimento enquadrado pela própria Constituição da República como incompatível com o decoro parlamentar, punível com a perda do mandato.

A imunidade parlamentar é indispensável ao bom e livre exercício das funções dos congressistas, e é a sociedade que dela necessita, para que o seu representante atue de modo efetivamente independente, em proveito do interesse público. Contudo, é uma prerrogativa funcional, que também se sujeita a limites que, transgredidos, merecem a devida reprimenda social, política e jurídica.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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