Marcelo Figueiredo Silva
(Universidade Federal de Sergipe)
Há setenta anos era publicado por uma pequena editora de Turim, a editora De Silva, o livro Se questo è un uomo (É isto um homem?, na tradução brasileira) do italiano Primo Levi. Com tiragem de 2500 exemplares, não esgotada, e uma tímida recepção crítica, ainda que favorável, a obra perigava cair no esquecimento. Rejeitada inicialmente pela prestigiada editora Einaudi – cujo parecer contrário da escritora Natalia Ginzburg até hoje é tema controverso –, o livro teria de aguardar uma década por uma segunda edição para que recobrasse o fôlego, com suas sucessivas traduções desde então.
Não fora o primeiro relato sobre o genocídio judaico perpetrado nos campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra (1939-1945), mas fatalmente estava destinado a se tornar uma referência testemunhal do evento dada sua qualidade literária e amplidão analítica em meio à cacofonia de relatos dos sobreviventes.
Se hoje acompanhamos com preocupação o revigoramento de teses revisionistas que procuram minimizar, ou mesmo negar, o impacto do Holocausto, ou vemos o fortalecimento de grupos da direita xenófoba e racista que tem se tornado uma voz eleitoral influente na Europa e nos Estados Unidos, relembrar a obra de Primo Levi se reveste de uma urgência ainda maior.
Sobrevivente de Auschwitz, para onde fora levado em fevereiro de 1944, entregue aos alemães após de sua captura como membro de um grupo de partisans do braço italiano do movimento antifascista “Giustizia e libertà”, o relato de Levi talvez tenha sido a primeira tentativa de racionalização narrativa do Holocausto, o que por vezes o levou a ser criticado por excessiva frieza. Como lembrou o historiador Tony Judt, o relato de Levi é apenas mais sutil porque mais “complexo, sensível, composto”. O próprio autor, num apêndice ao livro (não incluído na edição brasileira), afirma que escolhera a linguagem sóbria da testemunha, “não a lamurienta da vítima ou a iracunda do vingador”.
Para Marco Belpoliti, organizador da obra de Primo Levi, Se questo è un uomo pode ser lido como “um tratado de etologia humana”. E essa característica talvez explique parte da força do livro. Levi percebe muito rapidamente que ali, no espaço que adentrou com o número 174.517 tatuado no braço e que chamou de “anus mundi”, não pululava somente loucura coletiva. Havia método em suas ações. A compenetração entre técnica e ciência potencializava as atrocidades no extermínio de vidas humanas.
A violenta admoestação recebida de um soldado após tentativa de matar a sede com uma lasca de gelo avistada do lado de fora da janela – Hier ist kein Warum! Aqui não há porquês! –, o faz perceber rapidamente que não se tratava de mera de gratuidade ou do irracional. O embrutecer, a desumanização, como método.
Parte do caráter reflexivo e racional da obra é decorrência da elaboração do “Relatório sobre a organização higiênico-sanitária” do campo, em parceria com o médico Leonardo De Benedetti, também um sobrevivente de Auschwitz. O relatório fora solicitado aos dois pelo Comando Soviético após a evacuação do campo em janeiro/fevereiro de 1945.
Até o fim de sua vida, em 1987, Primo Levi se preocupou em não deixar cair no esquecimento o drama do Holocausto, sobretudo para as gerações mais novas. Sabia que a distância temporal dos fatos históricos envolvia um inevitável distanciamento emocional. Nisso, reforçava as palavras proferidas pelo filósofo Adorno em 1965, numa palestra radiofônica intitulada “Educação após Auschwitz”: “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”. Contra os perigos do esquecimento, cabe-nos ouvir o alerta.