PAIXÕES E ILUSÕES ETERNAS

Uma novela da vida real Todo ano é a mesma coisa, a sociedade, convertida em cativa telespectadora, fica a aguardar o desfecho da eterna novela que envolve a relação amorosa do Estado com a Classe Trabalhadora. Esperançosa torce para que, ao menos nas cenas do próximo capítulo, o mocinho Estado seja compreensivo e amoroso, casando-se com a sua amada Classe Trabalhadora. Mais que isso, espera que finalmente que o amoroso casal seja recompensado pelas humilhações e sofrimentos causados nos capítulos anteriores. Nesta diária novela da vida real, é preciso esclarecer como vive e o que pensa cada personagem, facilitando, assim, uma melhor compreensão do roteiro, especialmente por aqueles que não se interessam por este tipo de drama. A Classe Trabalhadora, menos afortunada pela sorte, diariamente luta para que tenha uma vida digna e feliz, ainda que sem os excedentes, confortos, mimos, luxos e supérfluos que são apresentados nos comerciais que intermedeiam os capítulos exibidos. O seu maior sonho é, no entanto, é conquistar o coração do poderoso Estado, tornando-o um amoroso e fiel parceiro para todo o sempre. Já o Estado, nascido em berço ricamente esplêndido, vive de forma nababesca, paparicado por todos, gastando fortunas e alimentado outras que com ele convive. Além de exageradamente abastado em recursos financeiros, tem alguns poderes mágicos, como o de mudar de rosto, habitar simultaneamente em vários lugares ou mesmo o conteúdo da voz. Sempre que pode, especialmente em anos eleitorais, faz questão de tornar público o seu amor pela Classe Trabalhadora. Os capítulos que entraram no ar nestes últimos dias bem simbolizam este amor tão conturbado, contraditório e difícil, levando o telespectador a acreditar que desta vez o rompimento será definitivo. O Estado, habitando a confortável moradia federal, não está fazendo nenhum aceno amoroso para a Classe Trabalhadora que está em greve de carinho, tampouco esta parece que cederá aos encantos do Estado sem que as promessas quebradas sejam restabelecidas. Aliás, se for pelo valor fixado para o salário-mínimo ou pelo reajuste prometido aos aposentados, só para citar duas das “declarações de amor” anunciadas, a Classe Trabalhadora não tem muito motivo para acreditar na reconciliação. Se for estender estes “mimos” para o Estado que reside em Sergipe, em outro de seus palácios governamentais, o namoro dificilmente terá volta, mesmo porque o que se faz de desamor no campo federal aqui se reproduz fielmente. Mais ainda, aqui o Estado, vestido de juiz, arrogantemente sequer permite que a Classe Trabalhadora lute para restabelecer a palavra quebrada ou a confiança abalada. E olhe que as cenas dos próximos capítulos prometem ser emocionantes, não se podendo antever qual será o grande final. Como se vê, nesta novela não faltam cenas de juras de amor eterno, traições, decepções, alegrias, promessas quebradas, esperanças frustradas, coadjuvantes e figurantes das mais diversas vinculações e talentos. Em conseqüência, os telespectadores têm sempre a impressão de que os dois personagens principais não conseguirão ficar junto no final, pois sempre tem alguém ou alguma coisa os afastando ou impedindo a aproximação. Têm ainda a sensação de o Estado, por possuir características visivelmente incompatíveis e contraditórias, nunca oficiará o seu amor pela Classe Trabalhadora, até porque o distanciamento social e as diferentes concepções têm se mostrado obstáculos intransponíveis para que tenham uma vida em comum. E, para agravar a relação, os demais personagens e figurantes não ajudam na compreensão da trama, pois mudam de ação e de caráter sem qualquer aviso ou explicação, impedindo que se saiba se são amigos ou inimigos do casal. Alguns coadjuvantes, no bom estilo de Rodrigo Santoro, entram mudo e saem mudo dos episódios, mesmo quando tinham obrigação de defender o casal, dando a impressão de que estão na novela apenas para garantir a boquinha de um bom emprego. Outros entram em cena apenas para provocar, enganar e tramar para que a mocinha não se case com o disputado herói, embora, não raro, assumam papéis de personagens identificados como “bonzinhos”. A novela das paixões e ilusões eternas certamente terá um final, não se sabendo ainda se feliz ou trágico. Mas na novela da vida real, diferente daquela que aparece diariamente nas antenas de tv, o telespectador-sociedade pode escrever os últimos capítulos. Mais do que isso, pode se tornar o próprio personagem principal de toda a trama, é só deixar o talento de escritor surgir. * Cezar Britto é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear. cezarbritto@infonet.com.br

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