Pensamentos e práticas

O pensamento de esquerda, qualquer das versões adotadas, tem sido decisivo para o livre avançar da humanidade, especialmente no trato da democratização e participação popular na gestão pública. É esta matriz, sem medo de errar, quem fez brotar a semente da compreensão de que todos são efetivamente iguais, independentemente da cor, sexo, religião ou berço nascido. É este o útero que agasalha a esperança, fazendo-a acreditar que vale à pena nascer, mesmo em um país campeão em concentração de renda, juros extorsivos e injustiça social.

Estava o pensamento libertário presente em todas as manifestações da humanidade que imaginaram, projetaram e tentaram fazer do planeta um solo fértil para Democracia, ainda que não se tenha assumido como de esquerda. Fomentou, ainda que se diga o contrário, quedas de monarcas, revoluções sociais, lutas de independência, combates contra a escravidão e milhares de outras contestações. Estava presente no amor pregado por Cristo, no pacifismo de Gandhi, na retidão de Buda, nos gritos dos revolucionários franceses, na rebeldia dos comunas de Paris, na marcha de Prestes, nos sonhos de Martin Luther King, no destemor de Mandela, na voz pura de Dom Hélder Câmara e nas campanhas cívicas de Betinho.

Não sem razão, portanto, este pensamento é largamente combatido nos mais diversos quadrantes do planeta, principalmente no mundo que tem no General Bush um exemplo de perfeição. Não é outro o motivo que faz dos autoritários, ditadores, banqueiros, latifundiários, grileiros e outros oligarcas de plantão adversários confessos dos movimentos que falam em igualdade, liberdade ou solidariedade. Não apenas confessos, pois também adoram agir na clandestinidade, disfarçados em falsos abraços ou através de sorriso largamente cheios de dentes, mal esperando a oportunidade para destruir todos aqueles que impeçam o livre-avançar de seus privilégios.

No campo da gestão popular da coisa pública, foram os integrantes dos partidos de esquerda quem mais pregaram e exigiram a aprovação de princípios fundamentais a vincular e moldar o administrador público, diferenciando-o do administrador privado. Para eles, enquanto o particular tudo pode fazer (desde que não expressamente proibido), o administrador público somente pode agir motivado pela publicidade, igualdade, moralidade, legalidade e transparência de seus atos. A própria Constituição Federal, antes de ser retalhada, dilapidada e emendada pelos conservadores governantes brasileiros, era comumente apontada com uma Carta-Cidadã, excepcionalmente aprovada quando o pensamento de direita estava fragilizado pela Ditadura Militar que apoiara.

Algumas novidades, inclusive, têm surgido no universo do controle democrático da coisa pública, além daquelas previstas na Constituição de 1988. Mesmo não tendo sido aprimorados os requisitos constitucionais do referendo, do plebiscito e das leis de iniciativa popular, alguns governantes mais progressistas ousaram avançar com novas formas de atuação popular. Neste sentido, já não é incomum falar em orçamento público com a participação direta da população em sua elaboração, conselhos comunitários deliberativos e consultivos sobre questões fundamentais à comunidade e, ainda, conferências para opinar sobre assuntos essenciais na formulação de políticas públicas (Conferência da Cidade, Conferência de Saúde e a recém realizada Conferência Nacional de Meio Ambiente, são exemplo de algumas realizadas no Brasil).

Mas nem tudo são flores e poesia no campo da esquerda, pois o pensamento que serve para construir também pode ser utilizado para consolidar a destruição. É o exemplo das doutrinas que apontam para a ditadura do proletariado como solução equivocada para resolver o problema da desigualdade. É a proposta de que os fins podem justificar os meios, a exemplo de assassinar, roubar ou se apropriar da coisa pública. Outra forma, mais dissimulada, é prática de aparelhar os mecanismos democráticos por ela própria proposto ou criado, simulando debates, manipulando plenárias e deslegitimando as decisões coletivas.

Talvez esteja aí a mais esquerda das propostas, a compreensão de que a prática vale mais do que qualquer discurso. Falar da igualdade sendo igual, defender a liberdade demonstrando ser livre e, sobretudo, ser solidário na ação. Escrevendo em outras palavras: quando o discurso coincidir com a ação, o pensamento da esquerda será realidade.

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