Prevenção ao coronavírus e descabimento de estado de sítio

Embora desmentido posteriormente, surgiram notícias de que o Presidente da República Jair Bolsonaro solicitara pareceres sobre a possibilidade de decretar estado de sítio em decorrência da necessidade de adoção de medidas de prevenção ao coronavírus.

Trata-se de excelente oportunidade para abordarmos, aqui, o tema do estado de sítio enquanto instituto jurídico, bem como apontar a sua total inadequação e descabimento como instrumento de atuação na presente crise.

Segundo Aricê Moacyr Amaral Santos, o Sistema Constitucional de Crises é “o conjunto de normas constitucionais que, informadas pelos princípios da necessidade e da temporariedade, tem por objeto as situações de crise e por finalidade a mantença ou restabelecimento da normalidade constitucional” (apud SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24 ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 761). José Afonso da Silva aponta que esse conjunto normativo visa “a estabilização e a defesa da Constituição contra processos violentos de mudança ou perturbação da ordem constitucional, mas também a defesa do Estado quando a situação crítica derive de guerra externa. Então, a legalidade normal é substituída por uma legalidade extraordinária, que define e rege o estado de exceção” (op. cit., p. 761).

No sistema constitucional em vigor, são mecanismos do sistema constitucional de crises o “estado de defesa” e o “estado de sítio”. O estado de defesa pode ser decretado pelo Presidente da República, ouvidos o Conselho da República e o Conselho da Defesa Nacional, para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza (Art. 136). O decreto determinará o tempo de duração do estado de defesa, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites legais, as medidas coercitivas a serem adotadas, que poderão ser as seguintes: I – restrições aos direitos de reunião, ainda que exercida no seio das associações, sigilo de correspondência e sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; II – ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes (Art. 136, § 1°). O estado de defesa não poderá ter um tempo de duração superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez por mais trinta dias, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação (Art. 136, § 2°). Decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta (Art. 136, § 4). Se o Congresso Nacional estiver em recesso, será convocado extraordinariamente, no prazo de cinco dias (Art. 136, § 5°). O Congresso deve apreciar o decreto dentro de dez dias contados de seu recebimento, devendo continuar funcionando enquanto vigorar o estado de defesa (Art. 136, § 6°). Se o decreto for rejeitado, cessa imediatamente o estado de defesa.

O estado de defesa poderá ser convertido em estado de sítio, na ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa (Art. 137, I). Nesse caso, o estado de sítio será decretado pelo Presidente da República, após prévia autorização do Congresso Nacional, cabendo ao Presidente da República, ao solicitar autorização, relatar os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso decidir por maioria absoluta (Art. 137, caput e parágrafo único). Com a autorização do Congresso, o Presidente da República poderá então decretar o estado de sítio, indicando, no decreto, a sua duração, as normas necessárias à sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas e, depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas (Art. 138). No caso de comoção grave de repercussão nacional ou conversão do estado de defesa em estado de sítio, este não poderá ser decretado por mais de trinta dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo superior (Art. 138, § 1°). Na vigência do estado de sítio decretado por comoção grave de repercussão nacional ou ineficácia das medidas adotadas no estado de defesa, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; suspensão da liberdade de reunião; busca e apreensão em domicílio; intervenção nas empresas de serviços públicos; requisição de bens (Art. 139). Não se inclui nas restrições à liberdade de comunicação a difusão de pronunciamentos de parlamentares efetuados em suas Casas Legislativas, desde que liberada pela respectiva Mesa (Art. 139, parágrafo único).

É exatamente porque no sistema constitucional de crises admite-se, excepcionalmente, a adoção de medidas coercitivas e restritivas de direitos e garantias fundamentais tão sensíveis ao Estado Democrático de Direito que a decretação de estado de defesa e de estado de sítio submete-se aos princípios da necessidade e da temporariedade. Como esclarece JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Sem que se verifique a necessidade, o estado de exceção configura-se golpe de estado, simples arbítrio; sem atenção ao princípio da temporariedade, sem que se fixe tempo limitado para a vigência da legalidade extraordinária, o estado de exceção não passará de ditadura” (op. cit., p. 762).

E é também para evitar que estado de defesa e estado de sítio tenham pressupostos fáticos falseados e para evitar que abusos sejam praticados durante a execução das medidas que a Constituição submete o estado de defesa e o estado de sítio a rigoroso sistema de controle. “Vale dizer: o estado de defesa não é, e não pode ser, situação de arbítrio, mas situação constitucionalmente regrada. Por isso, fica sujeito a controles político e jurisdicional”  (SILVA, op. cit., p. 765). Assim é que, além do controle político efetuado pelo Congresso Nacional, que deve aprovar o estado de defesa e autorizar a decretação do estado de sítio, bem como acompanhar e fiscalizar a execução das medidas, mediante comissão composta de cinco de seus membros designados pela Mesa, existirá o controle judicial posterior, eis que cessado o estado de defesa/estado de sítio, cessarão também seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executores ou agentes.

Como se vê, o sistema jurídico-constitucional do Estado Democrático de Direito prevê, sim, adoção de medidas de exceção destinadas ao resgate da normalidade institucional, ameaçada por situações que abalem essa normalidade.

Todavia, tais medidas devem ser adotadas nos termos constitucionais, sob pena de configuração de um estado de exceção não autorizado pela Constituição, com restrições não admitidas a direitos e garantias fundamentais, o que representa grave atentado ao Estado Democrático de Direito.

No texto publicado na semana passada (“Análise jurídica das medidas de prevenção ao coronavírus”) comentamos que medidas como suspensão das aulas no ensino em todos os níveis, suspensão do funcionamento de bares, restaurantes, academias, do comércio em geral, shoppings, cinema, teatro, casas noturnas, atendimento ao público em agências bancárias, cultos e missas, redução da oferta do transporte coletivo interestadual, intermunicipal e mesmo intramunicipal, entre outras [todas voltadas à redução da circulação de pessoas e o contato propício ao contágio], que são medidas restritivas às liberdades fundamentais de locomoção e circulação e ao direito de propriedade, são medidas que passam, e bem, no teste da proporcionalidade, pois a restrição desses direitos fundamentais individuais se dará – em grau elevado, é verdade – na exata medida da necessidade e da adequação para a prevalência do direito fundamental de todos à saúde, integridade física e vida, presente a dignidade da pessoa humana, fundamento da República, já sendo possível imaginar, para evitar o colapso do sistema de saúde pública e da rede de atendimento, a medida drástica de quarentena geral [Itália, França, Argentina, por exemplo, já caminharam para esse extremo, para não mencionar a própria China, muito antes], inclusive com aplicação de sanções (como multa) para o caso de descumprimento.

No entanto, o estado de sítio, como mencionado anteriormente, não passa nesse teste da proporcionalidade, porque as medidas de restrição a direitos fundamentais que o estado de sítio legitima (obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; suspensão da liberdade de reunião; busca e apreensão em domicílio) não são adequadas (é dizer: inaptas para o alcance do resultado, pois a detenção de pessoas, a devassa nas comunicações sigilosas individuais, a violação da privacidade domiciliar e as limitações ao direito fundamental à informação e as limitações à liberdade de imprensa em nada têm serventia na prevenção ao coronavírus) e nem necessárias (há outras formas menos danosas aos direitos fundamentais da sociedade, dentre as quais aquelas já tomadas e até mesmo a “quarentena geral”, se vier a ser adotada).

Em sendo assim, a eventual decretação de estado de sítio, além de inconstitucional e não ter qualquer serventia para a prevenção ao coronavírus, seria a perigosa porta aberta para a ruptura total com a institucionalidade democrática, um verdadeiro atentado ao Estado Democrático de Direito e um passo rápido para a sua transformação em uma ditadura.

Felizmente, os sinais emitidos pelo Congresso Nacional dão conta de não aprovação de eventual pedido de autorização para decretação de estado de sítio, mas fiquemos alertas, porque na velocidade dos acontecimentos da crise, não desejamos ser surpreendidos com tamanho retrocesso em nossas liberdades públicas e democráticas.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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