Reforma Política e Democratização da Comunicação Social

Ao fim de um pleito eleitoral para o cargo de Presidente da República que se revelou o mais acirrado desde a redemocratização (relembre: em 1989, Collor venceu Lula no segundo turno por margem de 53,03% a 46,97% dos votos válidos; em 1994 e 1998, Fernando Henrique Cardoso obteve a maioria absoluta dos votos válidos já no primeiro turno, com 54,28% dos votos válidos em 1994 e 53,06% dos votos válidos em 1998; em 2002, Lula venceu Serra no segundo turno por margem de 61,27% a 38,73% dos votos válidos; em 2006, Lula venceu Alckmin no segundo turno por margem de 60,83% a 39,17 dos votos válidos; e em 2010, Dilma venceu Serra no segundo turno por margem de 56,05% a 43,95% dos votos válidos), tendo Dilma Roussef vencido Aécio Neves por margem de 51,64% a 48,36% dos votos válidos, é chegada a hora de a sociedade brasileira efetuar importantes reflexões, que se transformem em ideias concretas para ações transformadoras do status quo, rumo ao aperfeiçoamento do nosso sistema político democrático.

Em nosso entendimento, essas reflexões/ideias/ações passam necessariamente pela reforma política com democratização dos meios de comunicação:

1 Reforma Política – Como bem pontuou Luís Roberto Barroso em sua palestra de abertura da Conferência Nacional dos Advogados, a reforma política é uma pauta sobre a qual há um amplo consenso quanto à urgente necessidade de sua realização e ao mesmo tempo uma inércia em concretamente levá-la a efeito. Somente a legítima pressão popular será capaz de fazer o Congresso Nacional realmente efetivá-la.

1.1 Reforma Política para além das eleições

As significativas manifestações populares do ano passado (as “jornadas de junho de 2013”) deram o importante recado: o formato atual da representação política do povo não atende mais aos seus anseios. O sistema representativo, essencial à democracia, precisa ser reformulado urgentemente. A “Reforma Política”, sempre protelada pelos representantes, deve ser feita para devolver ao povo a real titularidade do seu poder soberano, como determinado na Constituição de 1988.

Com efeito, a urgente reforma política que o Brasil precisa é aquela que garanta ao povo o exercício dos mecanismos de deliberação política direta. A proposta, que inclusive é absolutamente compatível com o texto constitucional, sendo até mesmo sua diretriz, é que a democracia direta seja intensificada, ou seja, que se intensifiquem os diversos mecanismos de participação popular nas deliberações dos negócios que envolvem os destinos do Estado e de seus integrantes, tornando-os contraponto às mazelas do sistema representativo, fazendo a vontade popular exercer contínua e crescente pressão sobre seus representantes.

Todavia, como bem aponta Fábio Konder Comparato, a mesma Constituição que assegura o primado da soberania popular, com o povo a exercer o seu poder por meio de representantes eleitos “ou diretamente” (Art. 1º, parágrafo único), por voto direto, secreto, com valor igual para todos, mediante “plebiscito, referendo e iniciativa popular” (Art. 14), atribui competência exclusiva ao Congresso Nacional para autorizar referendo e convocar plebiscito (Art. 49, XV) e impõe exigências muito rigorosas para a iniciativa popular de projetos de lei (subscrição de 1% do eleitorado nacional, distribuído em pelo menos cinco estados, com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles – Art. 61, § 2º). Necessário eliminar esses grandes entraves à intensificação da democracia participativa, entraves que fazem depender da vontade dos mandatários o exercício direto do poder pelo mandante.

Nessa linha de ideias, uma boa proposta é aquela que foi apresentada ao Congresso Nacional em 2005, pela Ordem dos Advogados do Brasil (com apoio de diversas entidades da sociedade civil e sob a condução intelectual de Fábio Konder Comparato), no sentido de que os seguintes itens prioritários sejam potencializados na democracia participativa que a Constituição abstratamente já estabelece: 1) criar a iniciativa popular de plebiscitos e referendos; 2) permitir ao povo decidir por plebiscito sobre a realização das políticas econômicas e sociais previstas na Constituição, bem como sobre a concessão de serviços públicos e a alienação do controle de empresas estatais; 3) tornar dependente de decisão popular a alienação de bens pertencentes ao patrimônio nacional; 4) estender o referendo a emendas constitucionais e a acordos ou tratados internacionais; 5) tornar obrigatório o referendo de quaisquer leis em matéria eleitoral; 6) estabelecer preferência na tramitação de projetos de lei de iniciativa popular e impedir a alteração ou a revogação de leis de iniciativa popular sem a concordância do povo.

A hora é essa. A promessa constitucional da democracia participativa precisa ser efetivada com urgência, incorporando aos clássicos (porém não efetivados a contento, no Brasil) instrumentos de participação popular direta no processo político decisório (plebiscitos, referendos, iniciativa popular) os instrumentos proporcionados pelos avanços tecnológicos, a exemplo das redes sociais, que já permitem visualizar uma democracia participativa digital. É o avanço democrático, em termos de exercício da cidadania e do poder popular soberano, que os novos tempos impõem e exigem, sob pena de total ruptura com o sistema representativo e até mesmo abertura de margem para retrocessos autoritários.

1.2 – Reforma Política do sistema representativo

Ao mesmo tempo, batalhar pela aprovação, pelo Congresso Nacional, de uma Reforma Política do sistema representativo, que contemple os itens constantes da sugestão do projeto de iniciativa popular (denominado “Eleições Limpas”) apresentado pelo Comitê de Combate à Corrupção Eleitoral (integrado por diversas entidades representativas da sociedade civil) na data de 25/06/2013, dentre os quais destacam-se a proibição de doações eleitorais por empresas (para coibir a nefasta influência do poder econômico no processo eleitoral e suas nefastas consequências no funcionamento cotidiano do sistema representativo) e o aperfeiçoamento do sistema eleitoral, para prestigiar e fortalecer programaticamente e ideologicamente os partidos políticos e conferir identidade de sua atuação representativa com a vontade do eleitor (confira aqui a íntegra da proposta).

Trata-se de inovadora proposta de modificação da sistemática de eleição parlamentar, que modifica o sistema eleitoral para sistema de listas pré-ordenadas com dois turnos de votação: no primeiro turno, o eleitor vota no partido, observando a plataforma política e o programa partidário, além da lista de candidatos daquele partido; no segundo turno, após definido o quantitativo de vagas obtidas pelos partidos a partir do resultado no primeiro turno, o eleitor vota para definir quem serão os candidatos a preencher as vagas obtidas pelos partidos, tendo em conta a inicial previsão da lista pré-ordenada.

Se aprovada, essa proposta obrigará os partidos políticos a procurarem diferenciar-se, na campanha eleitoral no primeiro turno, de modo a convencer o eleitor de que é cada partido, presente o seu programa partidário, a sua plataforma política bem como a trajetória de sua atuação, que merece o voto na perspectiva da efetiva representação do eleitor por aquele conjunto de ideias e propostas. Uma eleição parlamentar em primeiro turno, nesses moldes, tenderá a ser muito mais qualificada em ideias, propostas e programas, além de contribuir para tão almejada nitidez ideológica e programática dos partidos políticos, hoje quase inexistente.

Ainda no aspecto eleitoral propriamente dito do sistema democrático, é chegada a hora de acabar com o instituto de reeleição para cargos executivos; como mais uma vez ficou evidenciado, a possibilidade de reeleição por si só é um fator de desequilíbrio na disputa, seja pela potencialidade de indevido uso da máquina governamental em proveito eleitoral, seja pela projeção maior que o simples exercício da função executiva reflete na campanha. Tome-se o dado histórico de que, desde que a reeleição passou a vigorar em nosso sistema, todos os Presidentes da República foram candidatos e conseguiram se reeleger (Fernando Henrique Cardoso em 1998, Lula em 2006 e Dilma em 2014). Se não se conseguir pôr fim à reeleição, que ao menos seja imposta a desincompatibilização do detentor do cargo, candidato à reeleição, bastando para isso uma releitura dos dispositivos constitucionais (ver, sobre esse assunto, o artigo de Daniel Sarmento: “Reeleição, Desincompatibilização e Interpretação da Constituição”).

Por fim, com a décima quinta eleição (1988, 1989, 1990, 1992, 1994, 1996, 1998, 2000, 2002, 2004, 2006, 2008, 2010, 2012, 2014) realizada após a promulgação da Constituição redemocratizadora, além de um plebiscito nacional (1993) e um referendo nacional (2005), é possível perceber que os meios tradicionais de campanha eleitoral vão se esgotando. As famosas carreatas e passeatas, que marcaram época em campanhas pretéritas, não mais se sustentam, sobretudo nas grandes cidades, tendo em vista o agravamento que impõem à já inviável (des)mobilidade urbana, sendo atualmente – e a campanha eleitoral de 2014 bem demonstrou – fator de aborrecimento redobrado à população; noutras palavras, o risco de candidatos, partidos e coligações, ao realizarem carreatas como meio de campanha eleitoral, é o de perder votos muito mais do que conquistá-los. Fenômeno semelhante, embora em menor proporção, também ocorre com os comícios (vedados os “showmícios”).

Esse quadro faz avultar ainda mais em importância espaço e tempo reservado aos candidatos, partidos e coligações para propaganda eleitoral no rádio e na televisão (meios de comunicação social de massa, serviço público), exigindo-se maior cuidado na distribuição proporcional-igualitária desse tempo, sob pena de cada vez mais desigualar a disputa. Eis o gancho para abordarmos a democratização dos meios de comunicação social.

2 Democratização dos meios de comunicação social

É cada vez mais intensa, a despeito do surgimento das novas mídias (em especial via internet), a influência dos meios de comunicação social de massa na formação da consciência crítica e da opinião pública. De outro lado, é fácil constatar que os grandes grupos privados concessionários de serviços de rádio e televisão praticamente detêm o monopólio dessa ampla difusão de ideias e pensamentos, além do viés informativo que melhor se apresente à defesa sistemática e global de seus interesses enquanto grupos econômicos. Sendo assim, a toda evidência, comportam-se, abertamente ou de modo subliminar, como atores políticos de nefasta influência no processo decisório nacional. O grave, aí, é que o fazem por meio de canais e frequências que são propriedade pública.

Com efeito, serviços de rádio e TV são serviços públicos, por expressa determinação constitucional. Como todo e qualquer serviço público, deve ser prestado à população diretamente pelo Poder Público ou mediante autorização, concessão ou permissão. No caso, a competência federativa para a prestação desse serviço público é da União (Art. 21, XII).

Tratando em capítulo próprio do serviço público de radiodifusão sonora (rádio) e de sons e imagens (TV), a Constituição Federal dispõe competir ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal (Art. 223). O Congresso Nacional deve apreciar o ato de outorga ou renovação da concessão, praticado pelo Poder Executivo, em regime constitucional de urgência (45 dias para a Câmara, 45 dias para o Senado e 10 dias para a Câmara apreciar eventual modificação operada pelo Senado – Art. 223, § 1°), sendo certo que o ato de outorga ou renovação somente terá efeito legal após deliberação do Congresso Nacional (Art. 223, § 3°). Para não renovação de concessão ou permissão, a Constituição impõe o quórum de 2/5, em votação nominal (Art. 223, § 2°). O prazo da concessão ou permissão será de dez anos para emissoras de rádio e de quinze para as emissoras de televisão (Art. 223, § 5°), somente podendo ser cancelado antes do prazo por determinação judicial (Art. 223).

Como todo e qualquer serviço público, o serviço de radiodifusão sonora de sons (rádio) e imagens (TV) deve ser continuamente avaliado pelo Poder Público – no caso, pela União – sempre na perspectiva da sua melhor prestação à coletividade. Como todo e qualquer serviço público prestado mediante concessão ou permissão, incumbe ao poder concedente – no caso, a União – a devida fiscalização e monitoramento de sua prestação pelo concessionário (empresa de rádio e de TV).

Nesse sentido, cabe à União (Poder Executivo no ato de outorga e de renovação da concessão e Poder Legislativo na sua apreciação) verificar, sobretudo, o regular cumprimento, pelas concessionárias, dos princípios constitucionais da produção e programação, nos termos do Art. 221:

Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Finalmente, para melhor subsidiar a apreciação dos atos de outorga/renovação de concessão, o Congresso Nacional deve instituir, como seu órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei (Art. 224).

Conselho que, por sinal, já existe, regulamentado nos termos da Lei n° 8.389/91, que lhe atribui competência para realizar estudos, pareceres, recomendações e outras solicitações efetuadas pelo Congresso Nacional acerca da temática da comunicação social e em especial sobre: a) liberdade de manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação; b) propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias nos meios de comunicação social; c) diversões e espetáculos públicos; d) produção e programação das emissoras de rádio e televisão; e) monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação social; f) finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas da programação das emissoras de rádio e televisão; g) promoção da cultura nacional e regional, e estímulo à produção independente e à regionalização da produção cultural, artística e jornalística; h) complementariedade dos sistemas privado, público e estatal de radiodifusão; i) defesa da pessoa e da família de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto na Constituição Federal; j) propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens; l) outorga e renovação de concessão, permissão e autorização de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens; m) legislação complementar quanto aos dispositivos constitucionais que se referem à comunicação social (Art. 2° da Lei n° 8.389/91). Conselho que tem a seguinte composição: I – um representante das empresas de rádio; II – um representante das empresas de televisão; III – um representante de empresas da imprensa escrita; IV – um engenheiro com notórios conhecimentos na área de comunicação social; V – um representante da categoria profissional dos jornalistas; VI – um representante da categoria profissional dos radialistas; VII – um representante da categoria profissional dos artistas; VIII – um representante das categorias profissionais de cinema e vídeo; IX – cinco membros representantes da sociedade civil (Art. 4° da mencionada lei).

É chegada a hora de a sociedade brasileira tomar para si o controle efetivo e social-participativo do exercício desse serviço público tão essencial à democracia. E atuar, também por meio de seus representantes no Poder Executivo e no Congresso Nacional, na efetiva fiscalização do cumprimento, pelos grandes grupos econômicos empresariais concessionários desses serviços, dos princípios constitucionais e das regras legais regentes da comunicação social.

Somente com o cumprimento efetivo desses princípios e regras é que a comunicação social via rádio e TV – serviço público – poderá ser efetivamente democratizada e deixar de ser utilizada como fator de desequilíbrio e de desestabilização do regime democrático. Mais ainda, poderá ser utilizada em proveito da liberdade ampla de informação e da intensificação de programas e debates qualificados, em canais abertos, sobre os temas políticos de interesse geral da sociedade, com crescente aprimoramento da consciência crítica e da cidadania.

Reforma política com democratização dos meios de comunicação social, eis o próximo grande desafio da sociedade brasileira.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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