Renúncia ao Mandato e Foro Especial

A renúncia de Eduardo Azeredo (PSDB/MG) ao mandato de Deputado Federal, às vésperas de ser incluído em pauta do Supremo Tribunal Federal o julgamento da Ação Penal n° 536 (conhecida como a ação penal do “mensalão tucano”), levanta a necessidade de novas reflexões sobre os efeitos jurídicos desse ato político unilateral.

O tema já foi abordado aqui neste mesmo espaço da Infonet, mas sob outra perspectiva, relacionada à hipótese de inelegibilidade no caso de renúncia ao mandato parlamentar “desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura” (alínea “k” do inciso I do Art. 1° da Lei Complementar n° 64/90, incluída pela LC n° 135/2010).

A perspectiva de análise da renúncia a mandato parlamentar, agora, é relacionada ao foro especial por prerrogativa de função que a Constituição assegura aos Deputados Federais e Senadores (prerrogativa de só poderem ser processados e julgados criminalmente no Supremo Tribunal Federal), e a outras autoridades e agentes públicos [Instituto jurídico controverso, e que tem sido objeto de muitas análises críticas ao longo dos últimos anos. Diversos juristas, ao lado de entidades associativas de profissionais da área jurídica, apontam no instituto do foro especial um inadmissível privilégio incompatível com o princípio republicano da igualdade de todos perante a lei; sustentam que, num sistema garantista como é o nosso, não haveria qualquer constrangimento nem tampouco diminuição da dimensão da autoridade em responder a processo judicial no juízo de primeira instância, como ocorre com o cidadão comum, e que sua ampla defesa num contexto do devido processo legal estaria plenamente assegurada. Essa opinião é partilhada por alguns Ministros da Suprema Corte, a exemplo de Celso de Mello, que não cansa de expor, inclusive publicamente, a sua visão sobre o tema. Todavia, outros defendem o instituto do foro especial como mecanismo de governabilidade: sustentam haver um uso indevido de ações penais e processos penais como instrumentos de ação política contra adversários, o que seria facilitado quando toda e qualquer autoridade da República pudesse ser processada no juízo de primeira instância. Dentre os que publicamente se posicionam dessa maneira está o também Ministro do STF Gilmar Mendes].

Com efeito, essa situação (parlamentar que renuncia ao mandato às vésperas do julgamento pautado no STF) não é nova, e o próprio Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de examinar situações parecidas, bem recentemente:

1) Em dezembro de 2007, o então Deputado Federal Ronaldo Cunha Lima renunciou ao mandato na data anterior à do julgamento já pautado pelo STF (a acusação penal era pela prática do crime de tentativa de homicídio contra seu adversário político no Estado da Paraíba, Tarcísio Burity – AP n° 396). Eis o teor da sua carta de renúncia, devidamente protocolada na Câmara dos Deputados:

"Senhor presidente, nesta data e por este instrumento, em caráter irrevogável e irretratável, renuncio ao mandato de deputado federal, representando o povo da Paraíba, a fim de possibilitar que esse povo me julgue, sem prerrogativa de foro como um igual que sempre fui.
Requeiro a leitura em plenário desta renúncia, a respectiva publicação e a comunicação dela a S.Exa, a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Ellen Gracie".

A questão jurídica posta ao exame da Suprema Corte foi a seguinte: tendo em vista que o próprio STF já firmara reiterado entendimento segundo o qual o foro especial cessa quando cessa o exercício da função pública, e uma vez que cessara o exercício da sua função pública com a renúncia ao mandato, não haveria mais a incidência do foro especial, e o processo deveria ser remetido a julgamento no juízo de primeira instância, mais especificamente, naquele caso, o Tribunal do Júri da Comarca de João Pessoa(PB).

E embora quatro Ministros (Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Ayres Britto e Carmem Lúcia) tenham votado pela excepcional manutenção da competência para o julgamento, tendo em vista a evidência de que a renúncia ao mandato, naquelas circunstâncias, revelava manobra protelatória e abuso do direito de defesa, para o fim de frustrar julgamento já pautado e postergar ainda mais o seu desfecho, trabalhando inclusive com a iminente prescrição da pretensão punitiva, a maioria dos Ministros decidiu que como a renúncia havia sido um ato jurídico regularmente formulado junto à Câmara dos Deputados e produzido validamente os seus efeitos jurídicos, não era possível manter o julgamento de pessoa que, naquele momento, não mais exercia qualquer função pública que lhe atribuísse o foro especial de julgamento no STF.

2) Em outubro de 2010, o então Deputado Federal Natan Donadon (PMDB/RO) renunciou ao mandato na data anterior à data marcada para o julgamento da ação penal a que respondia no STF (AP n° 396) e sua defesa pediu à Suprema Corte que reconhecesse a falta de competência para continuidade do julgamento, tendo em vista a perda do foro especial devido à renúncia ao mandato. Todavia, o STF – vencido apenas o Ministro Marco Aurélio – identificou evidente “fraude processual” e decidiu pela permanência do processo e continuidade do julgamento. Logo, a posição minoritária adotada no caso “Ronaldo Cunha Lima” consagrou-se majoritária no caso “Natan Donadon”, no qual houve também importante debate sobre a necessidade de se fixar marcos interpretativos nítidos para, em situações como essas de renúncia de mandato parlamentar às vésperas de julgamento, definir a partir de qual momento a renúncia não terá o condão de retirar a competência da Corte para que prossiga com o processo e efetue o julgamento.

Data em que o processo for colocado em pauta e data em que os autos forem encaminhados conclusos ao relator por ocasião do fim da instrução processual foram algumas das hipóteses ventiladas, mas não definidas, naquela oportunidade.

O caso “Eduardo Azeredo” poderá servir para essa definição jurisprudencial mais precisa. É verdade que o seu julgamento não tem ainda data marcada. É verdade também que o seu julgamento se aproxima, já tendo a Procuradoria-Geral da República apresentado as suas alegações finais. Todavia, há indicativo de que o Relator leve o tema (manutenção ou não da competência para julgamento) a apreciação do Plenário na semana seguinte ao carnaval.

A percepção pública, contudo, num contexto de extrema politização de processos criminais em julgamento no STF (a exemplo do que já ocorrera com o julgamento da Ação Penal n° 470 – o “mensalão petista”), é a de que o Deputado Eduardo Azeredo resolveu renunciar ao mandato antes da inclusão do seu processo em pauta para: a) tentar fugir do precedente “Natan Donadon” (quando a renúncia ocorreu na literal véspera da data já marcada para o julgamento, que acabou ocorrendo) e abrir margem para que a decisão seja pela perda de competência do STF; b) protelar o julgamento com a remessa dos autos à primeira instância; c) retirar o julgamento dos holofotes políticos para não gerar ainda mais prejuízos ao seu partido em um ano de eleições presidenciais e estaduais; d) fugir do rigor do STF no julgamento de ações penais que envolvem a ampla temática da “corrupção”, rigor demonstrado no julgamento da AP n° 470. E a percepção pública é de intenso repúdio a esse comportamento.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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