Renúncia de Mandato Parlamentar e Inelegibilidade

A Constituição Federal estabelece que uma das causas de perda do mandato parlamentar é “o procedimento incompatível com o decorro parlamentar” (Art. 55, inciso II). E, embora a Carta Magna remeta ao regimento interno do Parlamento a definição de casos configuradores de procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar, ela mesma já define pelo menos duas situações como tais: o abuso das prerrogativas e a percepção de vantagens indevidas.

Outras hipóteses de perda do mandato são a infringência das proibições, o não comparecimento em cada ano à terça parte das sessões ordinárias (salvo licença ou missão autorizada), a perda ou suspensão dos direitos políticos, condenação criminal transitada em julgado ou ainda nos casos determinados pela Justiça Eleitoral (Art. 55, em seus demais incisos).

As prerrogativas que a Constituição assegura aos parlamentares (a exemplo da inviolabilidade civil e penal por quaisquer de suas palavras, opiniões e votos) têm fundamento na lógica de todo o sistema democrático-representativo. Enquanto os membros dos demais poderes possuem garantias institucionais que lhes possibilitam o fiel desempenho de suas atribuições, sem interferências indevidas, o Poder Legislativo é aquinhoado com a proteção dos seus membros (eleitos pelo povo para mandatos de representação política) contra eventuais ações dos demais poderes que lhes possam embaraçar ou impedir o bom, efetivo e independente exercício das atribuições parlamentares.

Como o parlamento, no arcabouço da doutrina liberal-iluminista, é o órgão representativo da vontade geral, responsável pela definição das normas jurídicas impessoais e gerais a regular a vida social, bem como principal fórum de discussão política dos destinos do Estado, além de fiscalizador dos atos da Administração Pública, precisa possuir a independência necessária para não se tornar um mero instrumento da vontade do governante de plantão.  As prerrogativas parlamentares caminham nessa direção, a fim de lhes assegurar, enquanto representantes do povo, segurança e tranqüilidade para o cumprimento de seus deveres.

Todavia, tais prerrogativas parlamentares não devem se transformar em instrumentos de privilégios ou de defesa de interesses pessoais ou ainda de interesses ilícitos.

Daí porque a prática de ato incompatível com o decoro parlamentar é causa expressa de perda do mandato.

E como se deve proceder, diante de uma acusação de prática de ato incompatível com o decoro parlamentar? A formalização da acusação deve ocorrer por meio de provocação efetuada pela respectiva Mesa Diretora ou por partido político representado na casa legislativa, sempre observada a necessidade de se assegurar ao acusado a ampla defesa (Art. 55, § 2º). Formalizada a acusação, é instaurado um devido processo legal político-parlamentar, com específicas regras previstas na própria Carta Política e regulamentações constantes do regimento interno das respectivas casas, sem prejuízo de eventual responsabilização jurídico-penal a cargo do Poder Judiciário.

No caso do processo político-parlamentar em que se imputa ao acusado a prática de ato incompatível com o decoro, cabe aos próprios membros da Casa Legislativa decidir pela perda do mandato, em votação secreta e pelo quorum qualificado da maioria absoluta (art. 55, § 2º). Acaso a maioria absoluta considere que realmente houve a prática de ato incompatível com o decorro parlamentar, a penalidade prevista é a perda do mandato (Art. 55, II). Esse procedimento é doutrinariamente denominado de cassação de mandato parlamentar.

A cassação do mandato parlamentar, além de produzir a perda do mandato, gera a conseqüência da inelegibilidade “para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subseqüentes ao término da legislatura” (art. 1º, inciso I, alínea “b” da Lei Complementar nº 64/90, com redação conferida pela Lei Complementar nº 81/94).

Todavia, muitos parlamentares, de todas as esferas federativas, diante de processos de cassação contra si instaurados, passaram a adotar a seguinte estratégia: enfrentavam o processo, faziam a sua defesa, mas, na véspera do julgamento, se concluíssem que dificilmente escapariam da decisão pela perda do mandato, apresentavam renúncia, com o que o processo de cassação era extinto.

É verdade, perdiam o mandato pela renúncia. Mas o objetivo – alcançado – era o de escapar da conseqüência que seria gerada se tivessem perdido o mandato em decorrência da cassação determinada pela casa legislativa, qual seja, a conseqüência da inelegibilidade nos termos da norma do Art. 1°, inciso I, alínea “b” da LC n° 64/90, acima transcrito. E, assim, já nas eleições imediatamente seguintes, poderiam candidatar-se normalmente a qualquer cargo eletivo, podendo inclusive ser eleitos para o exercício de um novo mandato de representação política.

Como é fácil de constatar, essa estratégia foi socialmente repudiada. A cidadania percebeu que a renúncia do parlamentar, nos casos acima descritos, traduzia subterfúgio para impedir o julgamento e a sua conseqüência mais protetiva do interesse público, em caso de condenação: a inelegibilidade temporária para qualquer cargo eletivo.

Foi quando começou a reação da cidadania para coibir a prática da renúncia como estratégia deliberada para escapar da inelegibilidade. É o que se examinará na próxima parte, a ser publicada na próxima semana.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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