Rua Laura Fontes II.

Quando eu fui morar na Rua Laura Fontes 186, bem diferente do que é hoje, o local era um grande canteiro de obra, desabitado e ermo, muito escuro à noite. O leito da rua fora piçarrado em camada fina sobre o areal branco do aterro da região, e a iluminação era realizada mediante uma gambiarra provisória, pertencente à CAL, Construtora Alves Limitada, responsável pela edificação da totalidade daquele bairro nascente na cidade.

 

Na rua só entrava quem tinha negócio, e nem o correio sabia onde se situava. Ali não passava ninguém, só os trabalhadores da CAL.

 

Se hoje a estrutura do casario está modificada, naquele tempo as casas eram rigorosamente iguais, variando apenas a fachada com cores e desenhos de platibanda.

 

Quanto à planta baixa, rigorosamente as residências eram idênticas, democrática e descritivamente repetidas, des-criativamente também. Parecia algo planificado igualitariamente para nivelar a vizinhança, como sói os conjuntos habitacionais nascidos na cabeça dos burocratas igualitaristas, ou dos arquitetos mal projetistas e bem piores desenhistas.

 

Mas, quem fora morar ali não poderia exigir melhor, sobretudo eu, um professor auxiliar de ensino da UFS em início de carreira, com esposa ainda estudante de odontologia, sem qualquer ajuda financeira de meu lado familiar.

 

Afinal de minha família eu recebera bem e melhor, admoestações e conselhos acompanhados de repreensões e carões, muitas preces e bênçãos, do tipo; “que Deus lhe ajude” ou “que o bom Jesus o acompanhe”, estas coisas bem mais úteis ou pouco úteis. Já dinheiro este inútil e fútil vil metal, eu não recebi nenhum, nem a título de presente de casamento. Diziam, e isto foi uma jaculatória permanente, que a família estava em profundo aperto financeiro.

 

Fizeram-me, inclusive, uma proposta indecente; adiar o meu casamento, só para viabilizar uma ajuda que não me podia ser dada naquele momento. Uma proposta que nem foi analisada, afinal eu estava doidão para casar, e Tereza também. O tempo e Deus nos mostraram que a atitude fora correta, pois se dependesse deste presente de casamento, eu estaria solteiro, ainda na promessa.

 

E por que a pressa de casar se nada havia que o exigisse? Eu nunca fora tresloucado nem descontrolado para roubar moça, fugir, virar “tupamaro do amor”, título de uma reportagem de revista de circulação nacional, descrevendo os casamentos apressados, na pressão ou na porrada, para recompor a tolice realizada no hímen corrompido e na honra chamuscada.

 

No meu caso, não havia pressa, nem escândalo. A motivação para o casamento era a pura, cândida e viril vontade de constituir uma família. Igual aos meus colegas de então; José Nunes Vasconcelos e Conceição Resende, Marcos Túlio Barbosa Mendonça e Magaly Porto, Luiz Augusto Sobral com Sônia Beatriz Centurion, Raimundo Nonato Araújo com Laura Porto, José Augusto Machado com Iracema Barreto, meus primos Roberto Cabral Melo e Olímpia Sampaio, Antônio Carlos Cabral e Heliane Freire, Telmo e Yeda Machado Torjal, e tantos outros que juntos permanecem, em promessas de carinho; brigando, discutindo, encrencando, mas sempre juntos e inseparáveis.

 

O que me alimentava era casar novo, ter os filhos, ainda jovem, e receber os netos antes da velhice. Mas o planejado só vingou pela metade. A primeira parte aconteceu, com os filhos chegando logo, mas quanto aos netos, só me chegou um até o momento, e quando veio eu já dobrara a esquina pouco sex, da grei sexagenária.

 

Mas, se eu não tive ajuda da minha grei, do lado de Tereza houve uma somação aos meus esforços financeiros e eu pude adquirir, mediante financiamento do BNH, o imóvel da Rua Laura Fontes 186, então Rua C, como dito anteriormente.

 

Para quem não se lembra, naquele tempo a Rua C só tinha uma entrada, pela “rua do canal” (atual Avenida Anízio Azevedo), e o final da rua dava para um grande alagado (hoje a Praça da Imprensa).

 

Quem por ali hoje passa, vê que o trecho referido tem aproximadamente 120 a 130 metros, constituído de oito casas com 10 metros de frente e duas situadas nas esquinas, uma voltada para a Avenida Anízio Azevedo e a outra para a Praça da Imprensa, cada uma com 20 a 25 metros de lado.

 

No lado par da rua, os números das casas constituem uma progressão aritmética de razão 10, iniciando pela de número 146 e terminando por 216, enquanto do lado ímpar começa no 147 e se estende ao 227, que era então larga na frente e arredondada pela esquina que se projetava.

 

Quando eu ali cheguei, em três de fevereiro de 1973, não existiam ainda as casas do lado ímpar, e as do lado par, ainda inconcluso, só estavam habitadas as de número 146, 156 e 166.

 

A casa de número 176, minha vizinha pelo lado esquerdo, foi a última a ser construída na rua. Ali se situava um barracão que servia de depósito da construtora. Depois vinha a minha casa, a de número 186, enquanto que a de número 196 e as demais da seqüência estavam em fase de acabamento.

 

Na casa 146, o primeiro morador foi o casal Murilo e Hortência Garcez, que neste tempo tinham dois filhos ainda bem crianças. O casal foi quem primeiro reformou a casa, modificando sua fachada, dando um formato de chalé. Após a reforma, Murilo pouco tempo morou ali, e a chalé foi vendido ao Sr. José Luís e Da. Tereza Cristina Carvalho que ali chegaram com o filho Adriano, com quatro anos de idade. O filho mais novo do casal, Sandro, se não nasceu por ali, chegou mamando. Adriano e Sandro foram colegas de folguedos de meus filhos Daniela, Machado e Junior, de quem muito terei a contar.

 

Na casa 156 morava o Sr. Nelson Araújo, mais conhecido pelo apelido “rapa de pires” e sua esposa, salvo engano chamada de Dona Cota. Por terem idades mais avançadas, o Sr. Nelson e Da. Cota não possuíam filhos morando ali.

Salvo engano ainda, talvez nos primeiros anos ali morasse o filho Marcelo Araújo que era leiloeiro oficial. O que posso dizer sem errar é que só morava com o casal uma filha de nome Jane, que era uma criança grande, muito querida na rua.

 

Do casal Araújo, relembro que Da. Cota era retraída e permanecia sempre no seu lar, enquanto o Sr. Nelson era alegre, conversador e simpático, contador de estórias, bem se relacionando com todos do quarteirão.

Depois o casal se mudou e hoje os dois são falecidos. O imóvel pertence a uma de suas netas que ali montou uma clínica médica especializada em endocrinologia.

 

Quem passa pela frente desta Clínica ali pode ver uma estátua entalhada em madeira de um casal conversando no banco do jardim. É um retrato fiel de Seu Nelson e Dona Cota, permanecendo em conversa feliz, como era assim no tempo em que ali residiam.

 

Na casa de número166 morava o casal Edmundo e Aíde Guerreiro. Edmundo, hoje aposentado, era alto funcionário do DNER estadual e Aíde é prima de Tereza, minha esposa. Por aconselhamento de Edmundo eu viria a comprar a casa de número 186. Quando para ali se mudou, o casal Edmundo e Aíde já tinha os três filhos: Edmundo, o Edi, Marcos Vinícius, o Marquinhos, e Cláudio Luiz, o Cacá. Depois a casa foi vendida ao Sr. Renato Meira e hoje moram sua viuva, a Sra. Maria José e os seus filhos.

 

Como dito, no lado esquerdo de minha casa, no número 176, se situava o barracão da Construtora Alves. Depois derrubaram o barracão e construíram a casa que foi adquirida pelo médico Aron Setton e sua esposa Dona Laura. Dr. Aron Setton e Da. Laura moraram ali durante um longo tempo com seus filhos Cristina, André, Aronzinho, Rita e Bebeto, e Margarida que era noiva do outro filho Samuel, que trabalhava numa mineradora de cassiterita, localizada no hiléia amazônica, como engenheiro de minas.

 

Com o falecimento de Da. Laura, ocorrido a poucos anos, Dr. Aron com tristeza vendeu a casa. Hoje moram Waldson e Dinda e seus filhos, antes moradores do lado ímpar do trecho, que ali se conheceram, se enamoraram e constituíram família, um assunto mais recente, a ser contado depois.

 

No número 196 e em tempos mais antigos, como vizinho pelo lado direito,  chegaria o Professor Pedro Amado e sua esposa, com suas três filhinhas, cujos nomes perdi, afinal o casal pouco tempo ali morou, tendo vendido a casa ao comerciante Eraldo Barreto, da loja Chame-Chame e a sua esposa Rita, que trouxeram os filhos Tony Erald e Eraldo Junior, depois nascendo Alexandre, o mais novo; todos amigos de meus filhos.

 

Quanto ao número 206, ali resistem ainda as Professoras Vilma e Vanda Santana, que são os moradores mais antigos depois de mim.

 

Vilma e Vanda chegaram com a sua mãe, a Sra. Ricarda. Vilma fora minha professora de História no Colégio Jackson de Figueiredo; uma mestra muito querida, irmã de meu colega Walter Macena de Santana, que ali aparecia bastante quando a mãe estava viva, momento em que aproveitava a visita e a tranqüilidade da rua para dar uma mangueirada no carro.

 

Dona Ricarda era uma velhinha muito simpática, que gostava de conversar com todos da rua. Relembro-a magrinha, em passos tardos, sorrindo dos folguedos da meninada que brincava despreocupadamente na rua. Depois adoeceu, tempo em que a visitei no leito de onde não mais saiu. Da. Ricarda foi o primeiro morador a falecer na rua. Seu falecimento se deu no final de 1993 ou início de 1994, justamente quando eu estava ausente, em viagem de estudo à Índia.

 

Na casa seguinte, a de número 216, morou inicialmente o Senhor Prata e sua esposa Da. Lourdes (?), e depois varias outras pessoas. O Sr. Prata era muito engraçado. Possuía uma cabeleira alva e um óculos de lentes grossas. Gostava de contar causos e fazer imitações. Arrancava risos arremedando uma briga de gato: “Eu lhe dou um vestido de reeeenda! – Eu raaasgo!”

 

Depois o Sr. Prata se mudou e na casa moraram várias pessoas, sempre por pouco tempo. Salvo engano, um desses moradores foi o Jornalista Célio Nunes, outro foi a professora Maria de Tereza Souza Cruz, mãe da jornalista Cristina Souza, que era bem jovem então. Cristina viria a falecer em plena mocidade num acidente de avião monomotor, justamente quando já brilhava no cenário jornalístico sergipano.

 

Pois bem! Esta casa de número 216, depois ficaria muito famosa por sediar o restaurante de comida a quilo Sal e Pimenta. Hoje ali funciona o maternal “Criar – Jardim Escola”.

 

Para terminar esta descrição dos moradores do lado par da Rua Laura Fontes, direi também que no extremo norte, na esquina da Avenida Anízio Azevedo, morou a princípio a senhora Leonor Valois e sua filha Aidine, então noiva de meu primo José Carlos Machado de Brejo Grande.

 

Posteriormente os dois se tornaram os proprietários da casa, habitando um tempo ali. Depois a residência foi alugada aos primos Telmo Torjal e Yeda, que chegaram com seus filhos Christian e Thaís. Não tenho lembrança se houve um novo habitante, porque a casa ficou fechada por um longo tempo, até que foi vendida. Hoje, parece-me pertencer a uma grande rede comercial que está a construir uma grande loja.

 

Já do outro lado, na esquina da Praça da Imprensa, moraram Waldemar Bastos Cunha e Waleska com seus filhos Tarcísio, Thiago, Marcelo e Pedro, e a caçula Helena, todos alourados e com olhos azuis.

Salvo engano, Waldemar neste tempo ainda não publicava na imprensa local os seus diálogos xistosos e inteligentes entre Salustrano e Inocêncio.

 

Hoje, no cotidiano da Rua Laura Fontes, o diálogo não enseja riso, nem correm os lourinhos de olhos azuis em vôos de sonhos infantis. A Rua mudou, parece-me ter se tornado bem hostil a esse sorrir pueril. Restou um riso de puro ardil, num redil só mercantil.

 

A casa de Waldemar, por exemplo, restou sem graça e sem sorriso de menino. Virou uma galeria de lojas ora com uma pastelaria ou loteria, ora um bazar e duas lanchonetes. A rua restou gordurenta, cheia de restos descartáveis, entupimentos de esgoto, sem falar dos muitos carros estacionados e seus pastoradores; marreteiros jovens e esmoleres, e muitos trombadinhas travestidos de solícitos flanelinhas.

 

Mas isso é uma história para bem adiante, porque ainda falta o outro lado da rua, com muitos assuntos e fatos a relembrar.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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