Saudade de Paris II

Um tolo se apresentando por crumb, tão anônimo, quanto epônimo e mal alcunhado, em pleno passeio público da democrática internet, se me prendeu à sola do sapato, como os dejetos caninos lançados na calçada que deveria ser limpa e estar acima da sarjeta.

Quer o pica caneta e espiroqueta contaminar-me com o seu gosto e fabular apedeutismo.

Quer que eu largue Paris e escreva sobre quebrangulo. Assim mesmo; com letra minúscula! Uma prova da própria insuficiência cultural e do desprezo institucional, florar e gramatical com os substantivos próprios, não fora mera ignorância, enquanto chacota exótica e esclerótica de Quebrangulo.

E Quebrangulo não merece desavio e desatenção por pequena e bem digna cidade do agreste alagoano; povoação bucólica onde bem cantaria Luiz Gonzaga, antes repreendendo: ‘Se arrespeite, seu morfético’! Quebrangulo é “sertão de mulher séria e de homem trabalhador, ora essa!”

Assim, até por reparo de desfeita, falarei de Quebrangulo, pertinho de Palmeira dos Índios, rincão que visitei várias vezes e onde tenho vários amigos.

Quebrangulo, por correto, Quebrângulo, por desavisos, é terra natal de muita gente destacada.

Ali nasceram o escritor Graciliano Ramos (vidas Secas, Memórias de Cárcere, São Bernardo) e o operário metalúrgico Manoel Fiel Filho, um dos mártires do DOI-CODI em São Paulo, por estar na hora e local errados, e fora confundido como perigoso terrorista.

É terra também do dublê de político e homem valente, Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque, o “Homem da Capa Preta”, o guerreiro defensor de Caxias no Rio de Janeiro, sempre acompanhado de sua barba bem cofiada, e um sobretudo negro a esconder sua “Lourdinha”, a metralhadora inseparável.

Ou seja, homens que não se escondiam na escumalha crûmbica dos que se borram de medo.

Quebrando o ângulo de volta e sem discutir a mastigação preferencial de crumb pelo charuto de Bill Clinton, que não fumou mas sonha ruminar, deixo Quebrangulo, a Veneza Alagoana, cortada pelos rios Paraíba do Meio e Quebrangulinho bem como suas várias pontes e volto a Paris, cortada pelo Sena e suas belas pontes.

Para os franceses, tanto o mar como o rio são substantivos femininos, enaltecendo-lhes a fertilidade amorável das águas.

Assim, eis “la mer”, o mar, “la rivière”, o rio, “La Seine”, o Sena, repartindo a cidade luz em duas fatias.

Na margem direita, “la rive droite”, a cidade institucional; o Louvre, os palácios reais, antigo palácio fortaleza hoje museu, o jardim das Tulherias e a Praça da Concórdia onde fora erguida a imperatriz lâmina do terror revolucionário.

Na margem esquerda, “la rive gauche”, a cidade dos estudantes, dos intelectuais onde sempre fermentou a inteligência, a cultura, o pensamento, o riso incontido dos jovens, os discípulos de Abelardo, de Robert de Sorbon, e daí os sorbonnard.

Oficialmente, a Universidade de Paris foi fundada em 1215, pelo rei Filipe Augusto.

Para os que se lembram de História Universal, Filipe Augusto de França fora contemporâneo de Frederico Barba Roxa da Alemanha e Ricardo Coração de Leão da Inglaterra, monarcas que conduziram a terceira Cruzada em tentativa de libertação de Jerusalém e do Santo Sepulcro.

Neste tempo, os frades estimulavam tais feitos em demanda da salvação, uma penitência para o perdão dos pecados, a que se somavam vezos de conquistas de mercado e novos revezos comerciais.

Era, porém, uma medida salutar, por saneadora e necessária, afinal os homens queriam se matar, guerrear, se trucidar uns aos outros.

Nada melhor então do que estimular a luta enquanto peregrinos, seja em busca de Jerusalém e dos santos solos, seja combatendo os mouros em Espanha, daí o peregrinar e o caminho de São Tiago de Compostela em sua versão francesa, relembrando os feitos de Carlos Martel, de Carlos Magno, o sacrifício de Roldão em Roncesvales, aquele que não soprou o Olifante e pereceu, e se fez mártir, a si, e aos pares de França.

À parte tudo isso a Universidade surgia como entidade não nascida “ex niihilo”, do nada, por geração espontânea, mas fruto da tradição escolar muito antiga, desde a época carolíngia, amadurecendo nos séculos IX e X, sempre anexa às paróquias, às catedrais e abadias, voltadas para a educação dos monges e jovens clérigos.

A universidade por sua origem, uma corporação de professores e alunos, “magistrorum et scholarium” surgira como uma fortaleza da fé. Mas há uma data destacada, que firma para sempre o seu caráter insubmisso frente à censura das consciências.
O ano é 1200, o local é o quarteirão latino, a margem esquerda do Sena.

Uma rixa fugaz de estudantes numa taberna ensejara a repressão pelo braço estatal armado.

E nesta briga entre militares truculentos e realistas, e discentes diletantes e idealistas, cinco estudantes foram mortos.

Eis iniciada a grande revolta de professores e alunos.

Um juramento é feito, uma promessa é desferida. É uma ameaça de fuga: doutores e aprendizes querem largar Paris em busca de outros centros de saber.

O rei está ausente, na Cruzada, peregrino. A regente, Branca de Castela, recua, trata-se de um ato maior, uma manifestação régia benevolente, fruto da importância que o caso requer.

O Bispo de Paris e seu Chanceler sentem-se, porém, ofendidos em sua autoridade.  Alguns mestres são excomungados e impedidos de exercer sua missão doutoral. O Trivium (Lógica, Gramática e Retórica) e o Quadrivium (Aritmética, Música, Geometria e Astronomia) têm que se submeter ao báculo e à estola.

Os mestres fazem greve e apelam ao Papa, e o conflito se agita em 1231, agora com novos estudantes mortos, com o abandono de vários mestres que se exilam em Reims, Orleans, Angers, Toulouse, só voltando a Paris quando da bula “Parens Scientiarum” de 13 de abril de 1231, a “Grande Carta da Universidade”, surge para estabeleceu os seus privilégios, liberdades e estruturas fundamentais de sua ação.

Era a idade de fogo, de ferro e de fé abrindo-se para os espíritos livres e assaz criativos.

Ameaças à Universidade sempre existiram, dos de dentro e, sobretudo, dos de fora, dos que não a compreendem lúcida, instigante e criativa, aberta a todas as ideias, mas enraizada ao solo de onde não pode sair sem perder a essência e a razão de seu existir.

E Paris, com o seu quarteirão latino é a paisagem essencial deste caminhar humano universal.

Voltando agora à ignorância do ser, a essa democracia burra, despreparada em maioria, direi que dividiu comigo um Ascenseur, o elevador do nosso Hotel, um turista, espécie de crumb aculturado.

Era princípio de noite, íamos sair; “la nuit etait encore un enfaint”, a noite era ainda uma criança!

“Gude naite!” – Disse-me a companhia replena em gentileza.

Carregado de capotes a vencer o frio invernal parisiense, respondi-lhe: “Bon soir!”

Estaria ele a pensar que eu estava a suar?

Não entendeu que “en France comme les Français”, na França como os franceses?

O fato merece destaque porque há muito turista que vai a Paris e passa indiferente à sua alma, sua história.

É como esse passeante iletrado e endinheirado, e pior estudado no bom inglês. Trocou o bom e velho “good evening” por um “good night”, mal colocado e pessimamente pronunciando. E ainda se achou o tal; o rei da cocada e da chanchada.

Coisas de crumb, qualquer crumb; em Quebrangulo, em Paris, na Caixa Prego ou no sovaco de Judas.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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